A complexidade do trauma – assinaturas e riscos biológicos
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As pessoas que vivem situações traumáticas podem não as relatar aos profissionais de saúde. Muitas vezes é a doença física que motiva a procura de cuidados, e é nesse contexto que se revela uma história pessoal de trauma. Foi o que aconteceu há dias, quando um jovem médico, perguntando sobre as doenças dos familiares próximos a uma senhora com obesidade, teve como resposta -“quando eu tinha 11 anos o meu pai morreu de doença do fígado. Eu e os meus irmãos ficámos contentes”. O relato subsequente revelou situações de abuso de vários tipos durante os primeiros anos de vida.
O risco de vir a sofrer de obesidade é significativamente maior para as pessoas que viveram situações de negligência ou violência na infância, como uma assinatura física do sofrimento psicológico vivenciado. Estas consequências biológicas podem assumir diferentes características e originar vários tipos de doenças físicas, presentes mesmo quando a exposição ao trauma psicológico não provoca doença psiquiátrica como a Depressão, a Perturbação de Stress Pós-traumática, ou não é detetada clinicamente.
A investigação científica tem vindo a comprovar que o cérebro e outros sistemas reagem ao trauma psicológico com fenómenos inflamatórios, como se de uma agressão física se tratasse – quando as lesões traumáticas excedem a tolerância interna, os sistemas imunológico e inflamatório inatos são rapidamente ativados e, se não forem contidos atempadamente, aumentam a probabilidade de adoecer. Orquestrada pelo sistema imunitário, esta defesa natural num primeiro momento é adaptativa, mas pode tornar-se doentia e vir a contribuir anos depois para doenças cardiovasculares, metabólicas, autoimunes e cancro. Depois de um trauma, todo o organismo aprende a responder ao stress de modo a estar permanentemente alerta, na iminência de um perigo ou agressão muito grave. As hormonas e outras substâncias libertadas por esta reação generalizada são as responsáveis pela desregulação inflamatória que precede a doença.
Por outro lado, a inflamação na periferia pode ativar células específicas no cérebro, gerando os sintomas psicológicos que caraterizam as perturbações psiquiátricas relacionadas com a vivência traumática, arredondando os traços de diferentes e complexas assinaturas.
A caracterização destas assinaturas biológicas do trauma permite conhecer os mecanismos que explicam os efeitos psicológicos e físicos das situações traumáticas a curto, médio e longo prazo, identificar fragilidades comportamentais e emocionais e traçar estratégias preventivas para a doença psiquiátrica. E ajuda a compreender porque é que perante acontecimentos igualmente adversos há pessoas que vão adoecer e outras que se vão mostrar resilientes. Perante a doença física, o reconhecimento dos doentes com antecedentes traumáticos e a avaliação do seu estado psicológico permitem o diagnóstico de perturbações psiquiátricas relacionadas com o trauma, inserindo a componente psicoterapêutica na abordagem clínica.
Há exemplos recentes e promissores de terapêuticas com base nos opióides, glutamato, canabinóides, psicadélicos, oxitocina, neuropeptídeo Y e microRNA, combinadas com psicoterapias específicas, que diminuem os sintomas e aumentam a resiliência. A relevância do eixo intestino-cérebro e do microbiota veio acrescentar informação ao papel da disfunção pós-traumática do sistema imune e criar novas possibilidades de intervenção farmacológica em perturbações da resposta ao stress. Sendo a reação aos acontecimentos traumáticos profundamente individual, é fundamental personalizar e aprofundar o conhecimento psicológico e biológico de cada individuo exposto, com o objetivo de minorar o sofrimento e de aumentar o bem-estar físico e psicológico.
Para quem está nos cuidados de saúde, e acompanha doentes com obesidade, hipertensão, artrite reumatoide ou dependência de substâncias, é pertinente criar condições para abordar a ocorrência de circunstâncias potencialmente traumáticas reconhecendo as suas assinaturas biológicas. Uma oportunidade de descobrir causalidades que permitam cuidar da pessoa e ser mais eficiente a tratar a doença, ou doenças.
Margarida Figueiredo-Braga (Psiquiatra, FMUP, Observatório do Trauma)
Como citar este texto:
Figueiredo-Braga, M. (2024). A complexidade do trauma – assinaturas e riscos biológicos. InfoTRAUMA, 20.
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