Vida de casado hoje é pior que um cativeiro,
para não ficar feia, não quer dar de mamar
não pega o neném no colo, para o vestido não amarrotar
A criança chora de noite, ela tem preguiça de levantar.
(Carolina Maria de Jesus)
São numerosas as aproximações entre Emma Bovary e Capitu; afinal, são as personagens femininas mais relevantes de seus respectivos autores. No entanto, também mostra-se pertinente apontar a relação entre Virgília, amante do protagonista de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), e a personagem de Flaubert. O interesse por essa relação tem dois pontos fundamentais.
Primeiramente, Madame Bovary (1856) é considerado o romance inaugural do Realismo. Ingressado em terras brasileiras, como “escola”, pelas páginas de Eça de Queirós (PELLEGRINI, 2012, p. 11), o Realismo era a escola literária com a qual Machado de Assis se identificava. O Realismo pode ser compreendido como um movimento de oposição ao Romantismo, expresso por um ensaísmo pouco conformista, que encontrava paralelo na visão desmistificadora e contundente dos narradores (CANDIDO, 1999, p. 57). No Romantismo, por outro lado, o tédio da burguesia é negado, e quando os personagens se casam, o livro acaba (SILVA, 2008, p. 27). Dessa forma, os costumes da classe dominante eram tecidos com amores complicados e desfechos resolutos (ibidem).
Em segundo lugar, em quase todas as obras do movimento realista, há a presença do anti-herói e da mulher não idealizada (SASAK, 2019, p. 358) e nos livros em discussão, não é diferente. O principal objeto de atenção deste trabalho é, como o título já indica, a figura da mulher não idealizada. Partindo da aproximação entre esses dois romances, é possível analisar as características fundamentais a partir das quais as personagens femininas são construídas nesse contexto Tais características revelam qual o lugar pensado para as mulheres no imaginário social da segunda metade do século dezenove. Feita essa introdução, cabe falar sobre as personagens em questão, a começar por Emma Bovary.
A narrativa se inicia quando Emma ainda é jovem e solteira. Diferentemente da maioria das mulheres do seu tempo, Emma pode estudar e, com isso, desenvolveu um grande apreço pela literatura. Mais do que isso: a literatura era como um combustível para as suas identificações e fantasias. A partir dessas leituras, Emma alimentava um ideal de amor romântico e consequentemente, uma expectativa idealizada com relação ao casamento. No entanto, o homem com quem Emma se casou é tão somente entediante, ainda que se trate de um marido cuidadoso e bondoso e de um casamento conveniente. O sr. Bovary é um homem medíocre em contraste com as ambições sofisticadas de Emma. Dessa forma, Charles Bovary não se apresenta como alguém admirável para sua esposa. Em função disso, Emma questiona o seu casamento:
”Por que fui me casar, meu Deus?” Ela se perguntava se não havia um meio, por outras combinações do acaso, de encontrar outro homem e tentava imaginar quais seriam aqueles eventos que não aconteceram, aquele caminho diferente, aquele marido que não conhecia (FLAUBERT, 2008, p. 52).
Como consequência dessas inquietações, Emma, na busca por saber o que significavam exatamente, na vida, as palavras felicidade, paixão e embriaguez que tão belas lhe pareceram nos livros (FLAUBERT, 2008, p. 42, grifos do autor), passa a manter relações paralelas ao casamento. Seu primeiro amante é Rodolphe, com quem passeava à cavalo. Tais passeios eram consentidos, e até incentivados, por Charles, acreditando que o estado psicológico de Emma, entendido como melancólico, melhoraria.
O término da relação com Rodolphe foi devastador para Emma, especialmente porque ele se deu no mesmo dia em que Emma se organizava para fugir com Rodolphe. Apesar de ter uma filha com Charles Bovary, a pequena Berthe, isso não era um empecilho para que Emma pensasse em fuga.
Ela teria tido o cuidado de enviar à casa de Lheureux sua bagagem, que seria levada diretamente à Hirondelle, de modo que ninguém suspeitaria; e, em tudo isso, jamais mencionavam sua filha. Rodolphe evitava falar nisso; Emma, talvez, não pensasse no assunto (FLAUBERT, 2008, p. 193, grifo nosso).
Berthe representa mais uma frustração para a sua mãe, já que o verdadeiro desejo de Emma ao engravidar era conceber um filho homem. Em função de tamanha frustração, Emma mostra-se negligente com sua filha, tanto que a demanda de cuidado de Berthe é delegada à ama de leite.
Um filho homem era como revanche de todas as suas impotências passadas. Um homem, pelo menos, é livre, pode percorrer as paixões e todos os países, atravessar os obstáculos, ir atrás das alegrias mais distintas. Mas uma mulher é continuamente impedida (FLAUBERT, 2008, p. 92).
A partir do exposto até aqui, é possível perceber Emma como a supracitada mulher não idealizada, comum aos romances realistas, já que, essa estava longe de ser a mãe ou a esposa exemplar. Apesar do seu comportamento afastar-se da moral cristã, Emma era devota, o que é índice da ambivalência dessa personagem. E tal religiosidade a ajudou a superar o fim da relação com Rodolphe: “Quando se ajoelhava diante de seu oratório gótico, ela endereçava ao Senhor as mesmas palavras de suavidade que murmurava antes a seu amante, nas efusões do adultério” (FLAUBERT, 2008, p. 209).
No esforço de ajudar a sua esposa, que segundo o diagnóstico sofria de ”doença nervosa” — sendo que, na verdade, ela estava sofrendo em segredo em função desse término — Charles a leva para ópera, um dos poucos ambientes públicos que as mulheres podiam frequentar naquele tempo. Nessa ocasião, Emma reencontra León, um homem mais jovem, que vem a ser seu próximo amante. Ironicamente, o primeiro encontro amoroso dos dois se passa em uma igreja. No entanto, esse romance não dura muito. Ao fim do livro, Emma está endividada e desiludida no âmbito amoroso, o que leva a personagem ao suícidio. Nesse contexto, ”o suícidio é a renovação de um prazer perdido: o suicídio é a consumação do destino da heroína romântica que ela sempre desejou ser” (KEHL, 1998, p. 127).
Dessa forma, conforme identifica Maria Rita Kehl (1998, p. 125), primeiro Emma se apresenta como a adolescente mística, em seguida como esposa virtuosa, depois como amante apaixonada e seduzida e, enfim, como amante experiente e lasciva. O que é completamente diferente do caso de Charles Bovary, que apresenta um comportamento constante, ”morno”, ao longo de toda narrativa.
Virgília, por seu turno, é caracterizada por ser atrevida, voluntariosa, bonita, ignorante e pueril (ASSIS, 2008, p. 59). Visando o casamento, ela é apresentada ao Brás Cubas na mocidade. No entanto, Virgília casa-se com Lobo Neves, um homem envolvido na vida política que poderia conceder os títulos e o status almejados por Virgília.
Apesar das conveniências do seu casamento com Lobo Neves, futuramente, Vírgilia e Brás Cubas se reencontram e tornam-se amantes. Nas palavras do defunto autor: ”agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos amávamos deveras” (ASSIS, 2008 p. 88). Virgilia era religiosa, rezava todas as noites (ibidem), o que a fez confessar para Brás Cubas o seu remorso por sustentar o relacionamento paralelo. Mas, Lobo Neves não suspeitava de nada e considerava que Virgília era a perfeição mesma (ASSIS, 2008 p. 89). Dessa forma, Virgília estava dividida entre um relacionamento conveniente com um marido que tinha plena confiança nela e uma paixão que remete à adolescência. Nesse contexto, Brás Cubas tem uma proposta:
”Lobrigava, ao longe, uma casa nossa, um mundo nosso, em que não havia Lobo Neves, nem casamento, nem moral, nem nenhum outro liame, que nos tolhesse a expansão da vontade (…). Fujamos (…) só as grandes paixões são capazes de grandes ações” (ASSIS, 2008, p. 94, 95).
”Não posso, não deixo o meu filho.” é o que Virgília responde (ASSIS, 2008 p. 98). Tal proposta é reiterada pelo defunto autor, especialmente porque o namoro entre Virgília e Brás Cubas era alvo de suspeita pública.
”O melhor é fugirmos” — insinuei; ”Nunca” — respondeu ela abanando a cabeça. (…) Vi que era impossível separar duas coisas que no espírito dela estavam inteiramente ligadas: o nosso amor e a consideração pública. Virgília era capaz de iguais e grandes sacrifícios para conservar ambas as vantagens e a fuga só lhe deixava uma” (ASSIS, 2008 p. 101).
Apesar de estarem cientes do risco de sustentar essa relação, em função do fato de que havia a desconfiança por parte da sociedade, assim o fazem. Até que Lobo Neves recebe uma carta anônima que denunciava o adultério. A sua reação foi perguntar para Virgília se isso era verdade. Ela respondeu que se tratava de uma calúnia infame (ASSIS, 2008 p. 130) e Lobo Neves acreditou.
Além disso, Lobo Neves demonstrava grande apreço por Brás Cubas, admirava o seus escritos políticos (ASSIS, 2008 p. 81) — embora não compreendesse seus escritos poéticos (SILVA JUNIOR, 2008, p. 33) — e cogitou conceder a ele um emprego (ASSIS, 2008 p. 112). Sendo assim, com a ajuda de Dona Plácida (ASSIS, 2008 p. 170), funcionária de Virgília, o seu relacionamento com Brás Cubas vai adiante até certo ponto. Até que essa relação torna-se insustentável por questões políticas. No fim, Virgília e Brás Cubas reencontram-se no enterro de Lobo Neves: ”Achei Virgília, ao pé do féretro, a soluçar (…). Virgília traíra o marido com sinceridade, e agora chorava-o com sinceridade” (ASSIS, 2008 p. 176, 177).
A partir do que foi apresentado é possível perceber que os conflitos vivenciados por Emma Bovary e Virgília não são de um todo distintos: ambas vislumbraram no casamento a única possibilidade de ascensão social e realização pessoal, mas, ao mesmo tempo, demonstram-se entediadas e insatisfeitas com a vida conjugal. Apesar de Charles Bovary e Lobo Neves representarem o casamento conveniente e confiarem plenamente nas suas respectivas esposas, eles estão aquém da sofisticação delas. Isso é exemplificado pelo fato de que Lobo Neves mostra-se incapaz de compreender os textos escritos pelo próprio amante de sua esposa e Charles Bovary, por sua vez, está ao lado de uma mulher intensa, que passa por altos e baixos ao longo da narrativa, ao passo que ele próprio não muda de humor, mostrando-se apático. Isso faz com que as personagens mantenham relações extraconjugais e cogitem fugir com os respectivos amantes. Tal situação complexifica-se pelo fato de que Emma e Virgília são religiosas e mães.
Assim, Emma e Virgília experienciam uma vida dupla, marcada pelo desafio de sustentar o seu desejo em contraste com a moral vigente. Dito de outro modo, a vida de ambas é atravessada pela dicotomia entre a esfera pública e a particular, dicotomia essa que é recorrentemente explorada por romances realistas. Por fim, na medida em que um triângulo amoroso ocupa o centro de ambas as narrativas, os dois romances apresentam uma crítica ao casamento enquanto final feliz.
REFERÊNCIAS:
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Saraiva, 2008.
CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira. 3. ed. São Paulo: Humanistas Publicações, 1999.
ESTRADA, Osório Duque. MANOBRAS DO AMOR, Opereta de costumes cariocas em 3 atos (completa). 2014. Disponível em: https://chiquinhagonzaga.com/acervo/?musica=manobras-do-amor-2. Acesso em: 21 fev. 2021.
FLAUBERT, G. Madame Bovary. Porto Alegre: L&PM, 2008.
KEHL, M.R. A mulher freudiana na passagem para a modernidade: Madame Bovary in Deslocamentos do feminino, ed. Imago, 1998.
JESUS. Carolina Maria de, ”As granfinas” in Quarto de Despejo (Álbum), 1961. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=t3dzlAr4euo&t=1307s>acesso: 3 mar. 2021.
NOBRE, T. Madame Bovary e histeria: algumas considerações psicanalíticas. Contextos Clínicos, n 6(1), 62-72, São Leopoldo, 2013.
PELLEGRINI, Tânia. Realismo: modos de usar. Estud. Lit. Bras. Contemp., Brasília , n. 39, p. 11-18, Jun 2012. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-40182012000100001&lng=en&nrm=iso>. acesso em 20 Feb. 2021. https://doi.org/10.1590/S2316-40182012000100001.
SASAK, Débora Mayumi; TOMAZ, Rogério. ARQUÉTIPOS FEMININOS EM “DOM CASMURRO”, DE MACHADO DE ASSIS, E “MADAME BOVARY”, DE GUSTAVE FLAUBERT. Memorial TCC Caderno da Graduação, FAE Centro Universitário, 2019.
SILVA JUNIOR, Augusto Rodrigues da, ”MULHERES PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS: VIRGÍLIA REDESCOBERTA”, Terra roxa e outras terras: revista de estudos literários, 2008.
Créditos na imagem: Reprodução: “A mãe morta”, Edvard Munch, 1899.
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