Capela-mundi: o catálogo | a.muse.arte
Santos, A. R., & Duarte, M. D. (2019). Capelinha das Aparições: Capela-mundi = Chapel of the Apparitions: World chapel. Fátima: Santuário de Fátima. (Arte e património, 3)
A exposição “Capela-múndi: Exposição temporária comemorativa do centenário da construção da Capelinha das Aparições” afirmou-se como uma referência no âmbito da museologia da religião. Prestes a terminar, foi agora complementada com a publicação do respetivo catálogo, em edição bilingue em português e inglês, tendo sido coordenado editorialmente por Ana Rita Santos e Marco Daniel Duarte, Diretor do Museu do Santuário de Fátima e comissário da exposição. O catálogo constitui o 3.º número da coleção “Arte e património”, na sequência de Francisco e Jacinta: Candeias que Deus acendeu (Duarte, 2012), catálogo das exposições comemorativas do centenário dos nascimentos dos Beatos Francisco e Jacinta Marto, e de Estudo científico da Escultura de Nossa Senhora do Rosário de Fátima (Coroado, & Duarte, 2017).
A abrir o catálogo, o Reitor do Santuário, Padre Doutor Carlos Cabecinhas, sublinha a importância da capelinha como “axis mundi”, eixo do mundo e espaço nuclear do santuário de Fátima. De acordo com o relato dos Pastorinhos, a Capelinha foi expressamente mandada construir pela Virgem, na aparição de 13 de outubro. Construída em 1919, a “capelinha”, pequena e singela nas suas formas vernáculas, alberga a imagem da Virgem de Fátima e torna-se o omphalo, o centro e ponto nuclear do santuário. Chegar à Capelinha é o propósito da peregrinação a Fátima.
Tendo como pretexto as comemorações do primeiro centenário, o sentido amplo da Capelinha, a forma individual como é apreendida pela multidão de peregrinos, os significados teológicos, sociais e culturais que tem vindo a adquirir ao longo destes 100 anos de existência, justificaram-na como como objeto nuclear da exposição e, por conseguinte, deste catálogo.
A par do propósito assumido de evangelização – objetivos admissíveis dado que é evidente a entidade eclesiástica que a promove e administra o espaço do santuário em que se insere – a exposição foi, também, uma ocasião para apresentar os resultados de uma aturada investigação e reflexão em torno do fenómeno de Fátima e para identificar e consolidar novos dados no âmbito da história da arte. Porém, a exposição temporária é, por contingência, uma ocorrência efémera. Inaugurada em dezembro de 2018, irá encerrar a 15 de outubro de 2019. O catálogo tem a função de a prolongar para lá do seu encerramento, ao mesmo tempo que regista o estado da questão sobre os temas abordados, tornando-se uma obra de referência em futuras investigações.
A estrutura do catálogo reflete estas duas propostas: a primeira parte consiste num estudo de 72 páginas sobre a capelinha das aparições; a segunda parte versa a exposição e compreende dois artigos com uma análise crítica de ordem museológica e museográfica (22 páginas), o catálogo propriamente dito das 96 peças expostas (100 páginas) e, por fim, a memória das várias fases do processo expositivo (33 páginas), incluindo uma galeria fotográfica (18 páginas).
O estudo sobre a Capelinha das Aparições, desenvolvido por Marco Daniel Duarte corresponde à primeira parte da sua tese de Doutoramento Fátima e a criação artística (1917-2007): O santuário e a iconografia (Duarte, 2013). Marco Daniel Duarte traça o historial do edifício, faz a análise da arquitetura e das suas referências e, sobretudo, apresenta a Capelinha enquanto padrão comemorativo das aparições, mas também como lugar simbólico da teofania e axis mundi do santuário. Como sintetiza.
O local da Capelinha será, desde o primeiro momento, o elemento congregador das assembleias, principalmente depois de a azinheira das Aparições ter sido levada, ramo a ramo, pelos peregrinos. Desde muito cedo, é ao redor da Capela das Aparições que se cumprem as promessas, é nos seus muros que os peregrinos deixam os ex-votos materializadores das mesmas promessas (situação que só deixa de ocorrer a partir de 1964) e é na sua contiguidade que se expõe à veneração dos féis a imagem esculpida da Virgem de Fátima, sobre um pilarete. Não admirará que seja em torno da pequena capela que se congreguem os devotos e que seja ali que se exerçam os rituais de piedade, em primeiro lugar a recitação do rosário, desde os primeiros dias da história do lugar, até ao culto mais oficial como a celebração por excelência do cristianismo católico que é a missa. (Duarte, 2019
Marco Daniel Duarte assina ainda um dos estudos sobre a exposição, intitulado Capela-Múndi: subsídio para a museologia do sagrado, onde apresenta a relevância do culto que aqui se pratica como justificativa do eixo norteador do discurso expositivo. Mais do que elaborar um estudo monográfico da capelinha, descreve a forma como a exposição faz a análise do fenómeno religioso, da liturgia e do culto, mas também dos peregrinos numa perspetiva que é igualmente antropológica e filosófica. E conclui:
A partir do acervo convocado […] a Museologia dará à contemplação objetos estudados e dispostos a partir de plataformas cénicas que os mostram como parte de um discurso que não dispensa as utensilagens da narratologia: a comparação, a antítese; o oxímoro (cf. n.os 59-60),
a repetição; a redundância; a anáfora, a metáfora, a metonímia, a sinédoque, a gradação, a alegoria, a sinestesia, a hipérbole, o símbolo, a intertextualidade, a síntese, a mimese
e tantas outras formas de retórica que a museografia potencia. (p. 91)
Refira-se que, desta citação, foram retiradas as remissões para as peças ilustram cada uma destas “utensilagens da narratologia”, provocando novas conexões e releituras do objeto exposto. Nalguns casos as remissões são óbvias, como a comparação entre “Aparição de Nossa Senhora aos três Pastorinhos” (Jenny de Beausacq, 1952) e “Olhei para o céu… bordei o milagre” (Concessa Colaço, após 1984), duas tapeçarias em lã e matéria têxtil com a representação do mesmo tema, ou a antítese entre os terços preciosos em ouro, prata, marfim, coral e o terço de plástico oferecido pelos pescadores de Caxinas. Também a intertextualidade, remetendo para a História trágico-marítima (Bernardo Gomes de Brito, 1735), Noutros casos, a relação não é imediata e obriga o receptor-leitor a um exercício de análise para seguir o narrador. É o caso do oxímoro, expressão de um paradoxo, entre as lajes da passadeira dos penitentes e a pintura “Agnus Dei” (Josefa de Ayala [Josefa de Óbidos], ca.1680).
Todas estas alusões a recursos da narrativa revelam uma intenção implícita da transformação do discurso visual (da exposição) num outro discurso textual (do catálogo), mas confirmam igualmente a preocupação primordial na elaboração de um discurso expositivo lógico e coerente.
Os dois textos relativos à exposição refazem o percurso expositivo a lógica discursiva, desvendando significados, estabelecendo relações semânticas entre os objetos expostos e integrando-os na composição do todo, justificando a presença de cada um no conjunto exposto. Em certa medida, ambas as análises compensam a ausência de descrições ou notas interpretativas nas fichas que compõem o catálogo.
O catálogo segue a estrutura da exposição, reconstituída nos seus 9 núcleos, incluindo em cada um os respetivos objetos, referenciados através da respetiva ficha identificativa que, genericamente, reproduz as tabelas do percurso expositivo. Aqui, as reproduções dos objetos expostos, em imagens de grande qualidade, quer na captação e escolha da perspetiva, quer no tratamento da imagem e respetivo recorte, contribuem, juntamente com todos os restantes elementos gráficos, para a qualidade estética deste livro.
A última parte corresponde à memória da exposição e permite a recuperação de todo o processo expositivo. Para memória futura, fica o registo dos vários planos expográficos, mas também dos processos que, em geral, são injustamente esquecidos, como os trabalhos de preparação, incluindo o transporte, limpeza e restauro das peças, a inauguração e as atividades de mediação cultural que foram promovidas ao longo deste ano, como as visitas temáticas e as visitas guiadas. Esta secção confere ao catálogo um caráter de registo globalizante da exposição a que se refere e fixa a meta-obra do guião expositivo. Em regra, os catálogos cingem-se ao tema científico da exposição e não à sua museografia. Este, numa opção que pode (e deve) vir a fazer escola, regista a museografia e as tarefas que lhe são inerentes, fundamentando-o como fonte primária para estudos futuros no âmbito da museologia e, em particular, da museologia da religião.
Também a bibliografia é exaustiva, incluindo as referências que fazem o enquadramento teórico atualizado dos temas aqui apresentados.
Em jeito de conclusão, pode dizer-se que, na sequência do programa expositivo que tem vindo a ser desenvolvido pelo Museu do Santuário de Fátima, a exposição Capela-mundi merece este catálogo e que este está à altura da exposição a que se refere. Neste ponto do percurso, a constatação da qualidade atingida poderá ser um estímulo a realizações futuras, mas é sobretudo compromisso, uma responsabilidade é uma exigência. As exposições que têm vindo a ser organizadas a pretexto dos centenários relacionados com as aparições e com os protagonistas de Fátima e que ficaram documentadas em exposições virtuais e em catálogos como este, e tudo aquilo que tem subjacente, como o conhecimento adquirido e o conjunto de práticas e procedimentos testados e validados, tudo isso exige continuidade. Cumprirá dessa forma os desígnios de evangelização, ao elucidar o sentido de Fátima junto dos peregrinos, mas estas exposições e aquilo que delas fica alcança um público mais vasto, não necessariamente religioso ou crente, constituído por todos aqueles que têm vontade de conhecer e compreender.
Referências bibliográficas:
Coroado, J. F., & Duarte, M. D. C. (2017). Estudo científico da Escultura de Nossa Senhora do Rosário de Fátima. Fátima: Santuário de Fátima. (Arte e património, 2)
Duarte, M. D. C. (2012). Francisco e Jacinta: Candeias que Deus acendeu. Fátima: Santuário de Fátima. (Arte e património, 1)
Duarte, M. D. C. (2013). Fátima e a criação artística (1917-2007): O santuário e a iconografia (Tese de doutoramento em Letras, área de História, na especialidade de História da Arte). Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. Acedido em http://hdl.handle.net/10316/21843