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Descolonizar o museu | a.muse.arte

The complexity reveals the fact that in reality, one does not always have the ‘answer’ – and that is the answer itself.
(Kilomba, 2010, p. 143)

Os gregos da época Helenística faziam cópias de arte clássica, com que enriqueciam as coleções particulares; os Romanos apropriaram-se dessas cópias, juntamente com outros objetos sofisticados que convergiam para a capital do império, provenientes das vastas possessões territoriais na Europa, África e Ásia; por volta do século XVI, as embarcações vindas da Índia e do Brasil traziam para a Europa, objetos e materiais exóticos que despoletaram um novo impulso colecionista; as expedições napoleónicas no Egipto e em Itália trouxeram um enorme fluxo de objetos para o Louvre, abrindo o precedente do financiamento de expedições por parte dos grandes museus nacionais europeus nas áreas colonizadas do Médio Oriente e de África, da Índia, da Austrália e da América Central e do Sul, recebendo, em troca, os vestígios de grandes civilizações já desaparecidas ou que estavam a ser dizimadas pela força política de uma escravatura tão intensa quanto camuflada. Resumir, desta forma simplista, um fenómeno complexo e poliédrico, é incorreto e inadequado, mas poderá ajudar a compreender o contexto das narrativas coloniais dos museus ocidentais.

Chegada ao Louvre dos tesouros artísticos trazidos pela Grande Armée
Jacques-François-Joseph Swebach, Século XVIII
Paris, Museu do Louvre

O colonialismo é uma evidência na maior parte dos museus criados e desenvolvidos ao longo do século XIX e é uma contingência dos propósitos identitários nacionais e imperialistas que definiam a constituição dos seus acervos, enquanto repositórios patrimoniais. O museu foi utilizado como uma ferramenta cultural e científica ao serviços dos propósitos colonialistas dos países europeus e, em certa medida, “the advent of the modern, public museum arrived as a rupture caused by the colonial, national ideology” (Savage, 2010, p. 100). O debate acerca da descolonização – que, de resto, não se limita ao universo dos museus – não ignora o caráter abrangente e persistente do fenómeno como componente integrante do passado e fator determinante do devir histórico, mas cuja presença continua impositiva e decisiva nos quotidianos da sociedade contemporânea. É, por isso, algo que ultrapassa as questões factuais acerca do discurso expositivo, das colaborações com as comunidades indígenas ou do retorno dos objetos aos locais de origem.

A questão, que tem estado muito centrada nos museus de antropologia e etnografia, ganhou relevo por ocasião da criação do Musée du Quai-Branly (atualmente, Musée du Quai-Branly – Jacques Chirac), o qual anexou as coleções do laboratório de etnologia do Musée de l´Homme e do Musée des Arts de l´Afrique et de l´Océanie.

Musée du Quai Branly
Paris

No discurso inaugural do museu, o presidente da República, Jacques Chirac, ao mesmo tempo que afirmava a homenagem de França aos povos que, ao longo dos tempos, haviam sofrido a violência dos países ocidentais, definia a criação do museu como “le refus de l’ethnocentrisme, de cette prétention déraisonnable et inacceptable de l’Occident à porter, en lui seul, le destin de l’humanité” e também “le rejet de ce faux évolutionnisme qui prétend que certains peuples seraient comme figés à un stade antérieur de l’évolution humaine, que leurs cultures dites “primitives” ne vaudraient que comme objets d’étude pour l’ethnologue ou, au mieux, sources d’inspiration pour l’artiste occidental” (Chirac, 2006, s.p.). Anunciava-se uma nova perspetiva acerca do “outro”, recuperando as suas narrativas, culturas, crenças, costumes, mas a inovação limita-se a um arrojado arranjo museográfico – de resto, também muito controverso. Excetuando os casos pontuais de algumas exposições temporárias e respetiva programação paralela, o discurso museológico, pouco informativo, mantém a visão etnocentrista acerca do “outro”, referido na terceira pessoa. Os objetos, independentemente da sua função ou simbologia, são esteticizados, apresentando-se como obra de arte, ainda que numa atitude condescendente de mostrar que há outros universos artísticos para lá da Europa. Os contextos originais são evocados através de (pre)conceitos vulgarizados e de uma visão estereotipada acerca da floresta tropical, sombria e misteriosa, numa sugestão artificial, simplista e muito redutora. Nem o “outro” assume a narrativa, nem o objeto é exposto na complexidade das suas evocações e representações. O fulcro da questão é que esse “outro” mantém a sua alteridade, em vez de, definitivamente, se assumir como “eu” no discurso expositivo.

A dificuldade em ultrapassar esta situação é mais premente nos museus de antropologia e etnografia, cujos domínios de investigação contemplam a variabilidade biológica, cultural e social do homem, mas é também muito substantiva na maioria dos museus ocidentais, pelo menos, naqueles que se arrogam a representação evolucionista da civilização.

O museu é uma instituição ocidental, surgida no contexto do Iluminismo e das ambições imperialistas. A desintegração dos impérios europeus provocou um conjunto de teorias pós-coloniais que abordam as circunstâncias e as consequências da colonização europeia e os efeitos sociais da imposição da identidade do colonizador sobre o colonizado. “Postcolonialism is the academic‐cultural component of the condition of postcoloniality. It represents a theoretical approach on the part of the formerly colonized, the subaltern and the historically oppressed” (Nayar, 2015, p. 122).

Edward Said, na obra seminal Orientalism (1979), analisa a forma como o mundo ocidental conceptualizou o Oriente num conjunto de ideias falsas e romantizadas , considerando que “The Orient is not only adjacent to Europe; it is also the place of Europe’s greatest and richest and the oldest colonies, the source of its civilizations and languages, its cultural contestant, and one of its deepest and more recurring images of the Other” (Said, 1979, p. 1). É este quadro conceptual que marca o aparecimento dos primeiros museus: a procura de testemunhos materiais dos primórdios das civilizações egípcias, mesopotâmicas e egeias, existentes nas zonas colonizadas entre o Médio Oriente e a Ásia ocidental. Porém, sob o pretexto de razões epistemológicas, o interesse por esses artefactos refletia um propósito de domínio político, social e cultural, aliado à propaganda da superioridade do colonizador. No mesmo sentido, Bernard McGrane afirma que a forma como, no século XIX, o ocidente transforma “the Other into a concrete memory of the past” (McGrane, 1994, p. 94) conduziu a uma abordagem antropológica que não incidia naquilo que os povos colonizados eram efetivamente (“in themselves”), mas naquilo que representavam para o “nós”-colonizador; ou seja, o discurso “speaks of the Other but never to the Other’ (Id., p. 96). Por isso, são agora reavaliados os valores tradicionais dos museus que continuam a expor artefactos das antigas colónias sem os considerar como obras de arte ao mesmo nível dos grandes mestres ocidentais. Citando McGrane, Tony Bennett afirma que:

The same was true of evolutionary museum displays: the place assigned the primitive within these was designed exclusively for western eyes, for telling a story to and about a metropolitan ‘we’ by means of the representational roles assigned to ‘them’. This exclusionary logic was most acutely evident in colonial contexts where the address of museums assumed, just as surely as their metropolitan counterparts, that ‘the primitive’ would only appear in the museum as an object of display and research, and never as a visitor. (Bennett, 2004, p. 110)

Tal como acontece nos museus de antropologia, os objetos são usados para fundamentar o discurso hegemónico dos museus de arte e história. Por esse motivo, os estudos pós-coloniais atingem o âmago da atividade museológica ocidental, obrigando a questionar as matrizes do seu funcionamento, a legitimidade da posse desses artefactos e a forma como são expostos.

Indeed, the issues surrounding the display and possible repatriation of human remains and sacred objects have begun to effect quite radical changes upon museum practices in the latter part of the twentieth century, resulting in restricted access, non-display of sensitive materials and repatriation. (Simpson, 2001, p. 108)

Salas 62-63 Morte e vida após a morte no Egipto: múmias
Egipto, c. 2686 a.C. – 395
Londres, British Museum
Foto: MIR, 2018

Enquanto os artefactos antropológicos têm um significado muito para lá do conteúdo estético e do valor patrimonial, nomeadamente, um sentido religioso ou mágico que se mantém ativo nas comunidades de origem, no caso dos objetos da Antiguidade Clássica esta situação não será tão premente, mas o fator de descontextualização é igualmente relevante e o sentimento de pertença permanece nos locais de onde foram removidos.

A atitude colonialista persiste na recusa em reconhecer a ilegalidade da incorporação de muitos dos objetos que fazem parte dos grandes museus, ditos universais pela abrangência dos seus espólios.

O British Museum, um dos mais relevantes destes museus, confirma que “in the early part of the nineteenth century there were a number of high profile acquisitions. These included the Rosetta Stone (1802), the Townley collection of classical sculpture (1805), and the Parthenon sculptures (1816)” (British Museum, 2019), mas é omisso quanto ao respetivo modo de aquisição. Tem sido, também, um dos principais alvos de censura e crítica, sobretudo pela falta de uma resposta adequada aos sucessivos pedidos de retorno de artefactos culturais, religiosos e históricos que lhe têm sido dirigidos por várias nações saqueadas pelo Império Britânico. A dificuldade do museu (e do país) em reconhecer os erros do passado colonial e as ilegalidades cometidas na apropriação do património são interpretados como uma postura arrogante que continua a defender os direitos do colonizador-dominador face aos direitos do colonizado-subalterno em relação à (sua) propriedade cultural e patrimonial.

O assunto ganhou grande relevância desde a campanha levada a cabo por Melina Mercouri, ministra grega da Cultura e das Ciências (1981-1989), pela devolução dos mármores do Pártenon, onde se destaca o impacto do seu discurso à Oxford Union, em 1986:

You must understand what the Parthenon Marbles mean to us. They are our pride. They are our sacrifices. They are our noblest symbol of excellence. They are a tribute to the democratic philosophy. They are our aspirations and our name. They are the essence of Greekness. (Mercouri, 1986, s.p.)

Sala 18 Esculturas do Pártenon Grécia, c. 438 a.C., acrópole de Atenas
Londres, British Museum
Foto: MIR, 2018

A questão dos mármores do Pártenon tem contornos particulares decorrentes do processo de apropriação, levada a cabo por Lord Elgin, o qual pode ser considerado como pilhagem (vd., por exemplo, Sánchez, 2017). No entanto e apesar de todos os esforços, a disputa continua em aberto e tem vindo a ampliar-se a outros museus e a outros países, como França e Alemanha. O presidente francês Emmanuel Macron encomendou a dois académicos, Bénédicte Savoy, de França, e Felwine Sarr, do Senegal, um relatório acerca da restituição de peças do património cultural africano. O documento final, “Rapport sur la restitution du patrimoine culturel africain: Vers une nouvelle éthique relationnelle”, foi entregue em 23 de novembro de 2018. Savoy e Sarr (2019) recomendam que os objetos que tenham sido removidos e enviados para França sem o consentimento do país de origem sejam permanentemente devolvidos, caso este o solicite, sendo que esta restituição deve ser integrada num processo colaborativo de recolha de dados, investigação e ações de formação. Em sintonia com estas recomendações, a ministra alemã da Cultura, Monika Grütters, confirmou, já este ano, a dotação de quase dois milhões de euros para que os museus, arquivos e bibliotecas investiguem a origem dos objetos adquiridos durante o século XIX e início do século XX, justificando: “For many decades, colonial history in Germany has been a blind spot in the culture of memory […]. Provenance research on collections from colonial contexts is a decisive contribution to taking a closer look” (Monika Grütters, cit. in Brown, 2019).

No entanto, a restituição dos objetos aos países de origem é apenas uma das faces do problema, onde se sublinha a necessidade de opções ponderadas e fundamentadas. Há uma outra face, talvez mais relevante e igualmente muito complexa: as narrativas em torno destes objetos e a sua recontextualização cultural, funcional, ritual ou simbólica.

Ao longo das últimas décadas e no quadro desta nova identidade pós-colonial, os museus ocidentais têm sentido a pressão das reivindicações dos antigos povos colonizados, mas a resposta continua a ser fraca e superficial, através da reformulação de algumas narrativas e museografias, reconfigurando-as numa perspetiva mais contemporânea, mas sem a coragem de uma análise (e menos ainda de uma contrição) profunda do passado, das relações culturais entre os povos, dos fenómenos de inculturação. O conhecimento continua colonizado, como argumenta Irminguard Staueble, no sentido em que o colonialismo significa também “the imposition of Western authority over all aspects of indigenous knowledges, languages and cultures” (2007, p. 90).

A descolonização implica que o conhecimento deixe de ser eurocêntrico. Nesse sentido, os povos das antigas áreas colonizadas reivindicam a sua integração, enquanto sujeito ativo, no discurso museológico, desafiando a autoridade do museu na sua elaboração e na forma como lida com espólios que lhes são culturalmente extrínsecos. A pretensa neutralidade de um discurso linear é, neste sentido, substituída pela interlocução entre as várias perspetivas acerca de um mesmo fenómeno, questionando continuamente os estereótipos e os convencionalismos e recuperando o sentido original dos objetos.

Such contextualization of previously established collections allows the museum to recover one of its former functions, that is to say, as a fulcrum for debate in which the final discourse is to be decided by the visitor, whose thinking is nurtured by the objects and the different discourses that have been given to them throughout time. (Sauvage, 2010, p. 109)

Enquanto nalguns países a perceção da inevitabilidade de um novo discurso já conduziu a alterações substanciais com a inclusão dos povos indígenas como enunciador dominante, reconhecendo a autoridade do seu conhecimento, na Europa o processo é mais difícil e mesmo a propaganda de um novo paradigma no tratamento das coleções coloniais – como no Musée du Quai-Branly – apenas esconde a fragilidade da mudança e não atinge os grandes museus universalistas. “In Europe, the cradle of western colonial ideology, changes have been slower and more uneven. However, it is certain that museums have been forced to renew themselves in order to survive” (Sauvage, 2010, p. 110). O colonialismo e o imperialismo dominante foram fortemente legitimados pela hegemonia ocidental e assimilados por hierarquias de raça e cultura, num padrão que continua a informar o mapa geopolítico e cultural, mesmo depois de alcançada a autonomia política dos povos que tinham sido colonizados (Kilomba, 2010).

O processo de descolonização dos museus, para lá dos diferentes modelos e ritmos em que ocorre, é inevitável. Mas também é mais vasto do que o retorno dos objetos aos locais de origem ou do que a introdução de narrativas nativas. É o próprio passado colonial que é necessário questionar – se o passado não pode ser alterado, pode ser analisado, escrutinado, discutido, entendido e assumido nas suas circunstâncias e consequências. E os resultados desta análise têm também de constar no discurso do museu: esse passado faz parte da própria existência desses objetos, como é parte integrante da história da museologia.

Referências bibliográficas:
Bennett, T. (2004). Past beyond memory: Evolution, museums, colonialism. London: Routledge.
British Museum. (2019). History of the British Museum. The British Museum (official website). Acedido em https://www.britishmuseum.org/about_us/the_museums_story/general_history.aspx
Brown, K. (2019, 5 Feb.). The German government is putting more than $2 million behind restitution research into objects. Artnet. Acedido em https://news.artnet.com/art-world/germany-restitution-1456681
Chirac, J. (2006). Déclaration de M. Jacques Chirac, Président de la République, sur le Musée du Quai Branly et le dialogue entre les cultures du Nord et du Sud, à Paris le 20 juin 2006. Acedido em http://discours.vie-publique.fr/notices/067002334.html
Kilomba, G. (2010). Plantation memories: Episodes of everyday racism. Münster: Unrast Verlag.
McGrane, B. (1989). Beyond anthropology: Society and the other. New York: Columbia University Press.
Nayar, P. K. (2015). Postcolonial studies dictionary. Hoboken: Wiley.
Sánchez, J. P. (2017). How the Parthenon lost its marbles. National Geographic History, (3-4, Mar.-Apr.). Acedido em https://www.nationalgeographic.com/archaeology-and-history/magazine/2017/03-04/parthenon-sculptures-british-museum-controversy/
Said, E. (1979). Orientalism. New York: Vintage Books.
Sarr, F., & Savoy, B. (2019). Restituer le patrimoine africain. [Paris]: Philippe Rey; Seuil.
Sauvage, A. (2010). To be or not to be colonial: Museums facing their exhibitions. Culturales, 6(12), 97-116. Acedido em http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-11912010000200005&lng=es&tlng=en.
Simpson, M. G. (2001). Making representations: Museums in the post-colonial era. London; New York: Routledge.
Staeuble, I. (2007). Entangled in the Eurocentric order of knowledge: Why psychology is difficult to decolonize. In V. Deventer, M. T. Blanche, E. F. & P. Segale (Eds.), Citizen city: Between constructing agent and constructed agency (pp. 89-97). Concorde, Ont.: Captus University Publications.


Fonte: Descolonizar o museu | a.muse.arte

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