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Entre legados: interpretando o autorretrato de Angelina Agostini

Publicado em: Entre legados: interpretando o autorretrato de Angelina Agostini

A representação de si, seja por meio do desenho, pintura ou fotografia, está diretamente ligada à identidade e à memória individual. Sabemos que nos séculos que antecedem a fotografia enquanto meio de registro acessível, o retrato e o autorretrato cumpriam ainda funções ligadas à reafirmação de uma posição social ou profissão, por exemplo. Para a profissão artista, o autorretrato poderia também servir ao propósito de se registrar as condições de trabalho – ambiente propício e amplo, muitas produções e até mesmo obras de referência. Levando-se em conta a reavaliação dos instrumentos teóricos de análise da História da Arte sob a perspectiva de gênero, a pesquisadora Caroline Farias Alves (2017) identificou, nos autorretratos de mulheres artistas, uma outra perspectiva que será fundamental ao desenvolvimento da discussão que pretendemos iniciar neste texto.

Para a autora, o retrato, então um dos únicos gêneros pictóricos permitidos às mulheres, seria fundamental para a afirmação de sua profissão, e o autorretrato cumpriria função bastante similar, pois “esse tipo de representação coincide com o período de concessão de direitos da mulher na Primeira República, como por exemplo, de ocupar espaços públicos, ambientes de trabalho e universidades” (ALVES, 2017, p. 154). A obra que iremos analisar é o Autorretrato de Angelina Agostini (1888-1973), pintado em 1915. Uma leitura interessante pode ser feita do lado direito para o esquerdo, e de baixo para cima. A tela feita com tinta a óleo traz uma representação da artista na qual o fundo e a figura humana quase se misturam; a distinção entre estes elementos da composição é feita de forma discreta com o ponto de luz na parede do canto esquerdo, o chapéu colocado na diagonal – “ligando” o fundo e a figura, e a vestimenta em tons avermelhados escuros. O rosto da artista surge aos poucos à medida em que a luz lhe confere maior visibilidade, e revela um olhar sereno, voltado ao espectador. Mas o que faz desta representação um ato político?

Pensemos agora na trajetória da artista. Angelina era filha de Abigail de Andrade (1864-1890) e Ângelo Agostini (1843-1910), ambos considerados grandes artistas brasileiros. No primeiro texto publicado nesta coluna, falamos um pouco sobre Abigail e o impacto dos julgamentos recebidos pela pintora em função de um episódio em sua vida pessoal. A revelação de seu relacionamento com Ângelo, à época um homem casado, fez com que o campo artístico se movimentasse para “esquecer” Abigail e sua arte. Tal episódio ocorreu pois Abigail estava grávida; oficialmente casados, Abigail e Ângelo partiram para a França, onde nasce a primeira filha do casal, a quem Abigail dera o nome de Angelina. Alguns anos depois, Abigail contraiu tuberculose, e faleceu com apenas 26 anos, grávida do segundo filho. Os primeiros estudos em arte de Angelina Agostini foram incentivados pelo pai e, após a volta ao Brasil em meados da primeira década do século XX, a imagem de Abigail seria desvinculada de Ângelo e Angelina, com a relação ilícita mantida em sigilo. Não por acaso, o talento artístico de Angelina era sempre atribuído ao pai, que seguiu trabalhando para a Revista Illustrada, publicação carioca de grande relevância. Tais fatos, no entanto, não demonstram alienação por parte de Angelina quanto à figura de sua mãe, e podemos ver isto no próprio autorretrato: a escolha de representar-se apenas pela metade sugere uma continuidade ou uma parte de si que permanece não conhecida aos olhos do espectador. Por estarmos tratando de um gênero pictórico que se valia para além do registro visual, podendo apresentar elementos e recursos técnicos e conceituais que ajudem a contar a história do ou da artista, o jogo de luzes e a expressão facial de Angelina também remetem às dificuldades enfrentadas por ela mesma no caminho para a consolidação no campo artístico. Segundo Cláudia de Oliveira (2020), Angelina apresentava-se com frequência trajando roupas consideradas masculinas, algo que nem sempre era bem recebido pela sociedade, e enfrentou muitos desafios à antes de alcançar o reconhecimento. Tendo recebido o Prêmio de Viagem em 1914, a pintora viaja para a Europa para estudar e lá participa também de exposições, além de ter atuado na Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial.

Atualmente, poucas obras de Angelina Agostini se encontram acessíveis para apreciação e pesquisa. Em contrapartida, há inúmeras menções à artista em publicações brasileiras. Sua trajetória vem ganhando importantes estudos, como os citados anteriormente, e há ainda outras chaves de leitura interessantes a serem exploradas, como sua amizade com Tarsila do Amaral (1886-1973). Segundo a historiadora e curadora Aracy Amaral (Universidade de São Paulo) na palestra Artistas mulheres e o lugar do feminino no modernismo brasileiro, transmitida online como parte da programação do seminário O lugar do feminino no modernismo brasileiro, da UNICAMP, Angelina e Tarsila eram amigas muito próximas, ao ponto de que Tarsila confiava a guarda de sua filha Dulce à Angelina quando precisava fazer longas viagens. Além disto, Angelina também fora ajudante essencial à concepção do ateliê de Tarsila. Embora a arte de Angelina esteja mais próxima dos estilos acadêmicos – como o impressionismo, Aracy Amaral identifica em Angelina Agostini um ponto de ligação entre as duas cenas artísticas, acadêmica e modernista, aspecto que também poderia ser estudado sob a perspectiva de gênero, uma vez que o lugar de Angelina no movimento modernista é uma discussão possível. Tal como Abigail de Andrade, Angelina tende a propor soluções bastante interessantes às narrativas de suas obras, que fazem com que o espectador procure, reflita, discuta. A condição do feminino, em Angelina Agostini, deixa implícita a breve trajetória de sua mãe e, ao mesmo tempo, marca o seu próprio lugar na História da Arte brasileira.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALVES, Caroline Farias. Entre os silêncios da História e as representações femininas: Retratos de Georgina de Albuquerque e suas contemporâneas. In: XII Encontro de História da Arte. Anais do XII EHA – Encontro de História da Arte. Campinas: UNICAMP, 2017. P. 153-164.

OLIVEIRA, Cláudia de. Angelina Agostini: a consagração da artista em 1913. 19&20, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, jan.-jun de 2020. Disponível em: https://doi.org/10.52913/19e20.vXVi1.00004

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Autorretrato. In: Google Arts & Culture – Partner: Museu Nacional de Belas Artes. S. L: Google Arts & Culture. Disponível em: https://g.co/arts/DHQ3PAgpNLngbRf29

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestranda em História pelo PPGHIS-UFOP. Possui ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, Antropologia Social, Curadoria e Patrimônio Cultural. É aluna do curso de Curadoria pelo CEFART/ Palácio das Artes em Belo Horizonte, além de atuar como artista visual independente. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social – JALS, sediado na UFOP. Fundadora do grupo autônomo Linguagens e Percursos Artísticos – GELP. ART.

Fonte: Entre legados: interpretando o autorretrato de Angelina Agostini
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