infoTRAUMA #21
Publicado em: infoTRAUMA #21
Imagem: @Canva
Quando ouvimos a palavra “saúde” juntamente com a palavra “LGBTQ+”, é provável que a associação mais imediata que façamos seja com saúde sexual. Isto porque, historicamente, a saúde das pessoas LGBTQ+ tem sido quase exclusivamente relacionada com o VIH/SIDA ou as infeções sexualmente transmissíveis. Durante muito tempo, o entendimento geral era que não haveria necessidade de pensar a saúde das pessoas LGBTQ+ de forma diferente e que num consultório médico orientação sexual e identidade de género pouco importariam. Contudo, nas últimas duas décadas, movimentos de luta LGBTQ+ e avanços na investigação têm vindo a demonstrar que as desigualdades na área da saúde são um fator cada vez mais relevante e que, de facto, num consultório médico não somos todos/as iguais.
Apesar de mudanças significativas e de uma Estratégia Nacional para a Saúde das Pessoas LGBTI (2019), as desigualdades presentes na sociedade reproduzem-se também no que diz respeito ao acesso à saúde: assim, os contextos da saúde são tão machistas, homofóbicos, racistas e capacitistas como os de trabalho, de educação ou de lazer.
O projeto “DIVERS – Diversidade e inclusão no acesso à saúde”, que desenvolvo no Centro de Estudos Sociais (www.projetodivers.com) desde 2022 e até 2028, pretende investigar justamente quais as desigualdades que afetam mais a comunidade LGBTQ+ no acesso à saúde em Portugal e como é possível intervir para reverter as dificuldades identificadas.
Dados preliminares recolhidos no projeto apontam para elementos que merecem a maior atenção. Em primeiro lugar, em linha com estudos desenvolvidos em outros países da Europa (Rossman et al. 2017; Wagner&Kitzie 2021), a maioria das pessoas LGBTQ+ prefere não fazer coming out em contexto clínico: se algumas escolhem a invisibilidade porque não consideram relevante transmitir esta informação ao pessoal médico, outras admitem recear que essa mesma informação aumente a vulnerabilidade num momento de sofrimento e exponha a pessoa utente a uma discriminação acrescida. Por outras palavras, persiste a perceção de que sair do armário como LGBTQ+ possa induzir a um pior tratamento ou causar uma quebra da confiança entre pacientes e profissionais de saúde. Sucede também que, para algumas pessoas, o coming out não se coloca como possibilidade, uma vez que acedem aos serviços de saúde acompanhadas por alguém que não apoia ou sequer conhece a identidade LGBTQ+: é o caso sobretudo de participantes mais novos. Finalmente, a ausência de material informativo – como cartazes e panfletos – explicitamente dirigido à comunidade LGBTQ+ alimenta a sensação de que a eventual visibilidade não será bem-vinda, porque, simplesmente, não está prevista.
É certamente relevante refletir também sobre o círculo de invisibilidade alimentado pela ausência de marcadores que assinalam, por exemplo, quando profissionais de saúde se identificam como pessoas LGBTQ+ ou aliados/as: uma grande maioria de participantes respondeu que se sentiria muito mais segura se houvesse, por exemplo, a presença de uma bandeira arco-íris no consultório ou se houvesse indicação dos pronomes usados por profissionais de saúde.
A falta de preparação de profissionais de saúde sobre questões LGBTQ+ é ainda considerada relevante: este défice reflete-se numa ausência de literacia em lidar com pessoas LGBTQ+, por exemplo, no respeito pelos pronomes; em comentários ofensivos, discriminatórios ou abertamente ignorantes, que chegam a estabelecer conexões fantasiosas entre a homossexualidade e algumas doenças; em casos menos frequentes, em formas de violência direta ou falta intencional de cuidado.
A discriminação, o medo de consequências negativas relativamente ao coming out, bem como a sensação de habitar uma identidade não prevista em contexto clínico, criam situações de stress acrescido no momento em que as pessoas LGBTQ+ precisam de ir a uma consulta ou fazer um tratamento. De facto, este conjunto de fatores configuram os espaços de saúde como lugares potencialmente traumáticos para pessoas já marcadas por múltiplas formas de desigualdade nos outros espaços sociais. Para as pessoas que incarnam também outras identidades menorizadas, como as pessoas trans, migrantes, racializadas e/o com deficiências, o acesso à saúde pode ser caraterizado por tantos obstáculos que se torna quase impossível.
Assim, não surpreende que uma considerável percentagem de participantes afirme que já deixou de participar em rastreios ou faltou a consultas como consequência do medo, do stress e da ansiedade – uma tendência que tem vindo a ser identificada em estudos realizados noutros contextos geográficos (Bezerra et al. 2020). Se, no plano individual, isto pode parecer um dado pouco significativo, no plano coletivo é um elemento que precisa ser analisado com a maior preocupação, uma vez que estamos perante um número considerável de pessoas que não participam em rastreios preventivos para doenças oncológicas, cuidados básicos – como ir ao dentista – ou em tratamento de doenças infeciosas.
Por todas estas razões, é preciso olhar para a saúde LGBTQ+ como uma questão que não interpela apenas a comunidade LGBTQ+ e quem trabalha no setor médico-hospitalar, mas sim como uma questão de saúde pública: assim, as estratégias para combater as desigualdades da população LGBTQ+ nesta área refletir-se-ão em melhores cuidados de saúde para todas as pessoas.
Para acompanhar os desenvolvimentos do projeto “DIVERS – Diversidade e Inclusão no Acesso à Saúde”: https://www.projetodivers.com/ou Instagram.
Mara Pieri (Socióloga, Investigadora CES)
Como citar este texto:
Pieri, M. (2024). A saúde LGBTQ+: uma questão coletiva . InfoTRAUMA, 21.