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Peter Lehmann é uma figura central da luta pela emancipação e pela dignidade das pessoas com experiência de sofrimento psíquico severo e contacto com a psiquiatria. Lehmann transformou a sua experiência pessoal com a psiquiatria numa vida dedicada à luta pela emancipação e dignidade das pessoas psiquiatrizadas e à procura de alternativas ao tratamento psiquiátrico tradicional. A sua história confunde-se com a história do ativismo pelos direitos humanos dos sobreviventes da psiquiatria na Europa. O texto que se segue baseia-se numa entrevista a Peter Lehmann que conduzi em Berlim, a 27 de fevereiro de 2017, publicada na íntegra no site Mad in Portugal (dezembro de 2024).
Na Floresta Negra alemã, na mesma região que viu nascer o escritor Hermann Hesse, Peter Lehmann cresceu à sombra de um duplo legado traumático: o da violência nazi que ainda ecoava na geração dos seus pais e o da violência psiquiátrica que viria a experimentar na própria pele. Nascido no período do pós-guerra, Lehmann teve de lidar com pais que, como ele próprio explica, “foram educados e socializados durante o fascismo de Hitler”. Mesmo não sendo apoiantes declarados do regime, carregavam consigo o peso daquele terrível Zeitgeist que moldou as suas personalidades e métodos de educação.
Esta educação, que Lehmann descreve como “frequentemente humilhante e violenta”, deixou marcas profundas. “Não sobrevivi muito bem àquela educação”, refere Lehmann, “concretamente, não consegui construir uma personalidade estável”. Era como se o trauma coletivo do nazismo se perpetuasse através das gerações, manifestando-se nas relações familiares e nas estruturas institucionais que persistiam.
Em 1977, Peter Lehmann, então com 27 anos, encontrava-se numa encruzilhada que mudaria para sempre o rumo da sua vida. Internado numa instituição psiquiátrica na Alemanha, via-se reduzido àquilo que ele próprio descreveria como um “zombie” – um homem que já não conseguia realizar as tarefas mais básicas do quotidiano. Os neurolépticos que lhe eram administrados não apenas o incapacitavam física e mentalmente, mas também o mergulhavam num estado de permanente ideação suicida.
Os médicos haviam-no sentenciado a uma vida de dependência química, alertando-o de que teria uma “recaída imediata” se não continuasse com as injeções semanais. Os pais, resignados, já haviam preparado um quarto onde o filho “doente mental crónico” poderia viver pelo resto dos seus dias, trabalhando na pequena fábrica familiar. O sistema psiquiátrico, com a sua violência institucionalizada, parecia ter traçado um destino irrevogável para Lehmann.
Os métodos de controlo e desumanização da psiquiatria institucional que experimentou – a medicação forçada, a invalidação da sua palavra, a redução à condição de “zombie” – ecoavam, de forma inquietante, as práticas de desumanização do regime nazi. Em ambos os contextos, a pessoa era despojada da sua humanidade e autonomia em nome de uma suposta necessidade médica ou social.
No entanto, foi precisamente neste momento de profunda vulnerabilidade que surgiu uma pequena brecha para a mudança. Durante as férias de Natal do seu psiquiatra, Lehmann esqueceu-se de tomar uma dose do medicamento que lhe havia sido prescrito. A temida recaída não aconteceu. Esta descoberta casual tornou-se a primeira centelha de esperança: e se os médicos estivessem errados? A decisão de interromper gradualmente a medicação, contra todas as recomendações médicas, marcou o início de uma extraordinária jornada de recuperação e transformação. Mesmo sob intensa pressão emocional dos pais, que ainda acreditavam nos psiquiatras, Lehmann manteve-se firme: “Podem bater-me até à morte. Nunca mais vou tomar estes medicamentos”. Crítico da medicação psiquiátrica, Lehmann continua hoje a defender métodos de cuidado alternativos, ainda que prescrevendo formas de saída da medicação graduais, metódicas e com acompanhamento por profissionais aliados ou por pares com experiência idêntica.
Mas Lehmann fez mais do que apenas recuperar a sua saúde – transformou a sua experiência traumática em força motriz para um ativismo pela mudança social. Da sua dor nasceu um compromisso inabalável com a luta pelos direitos humanos das pessoas psiquiatrizadas. O que começou como uma batalha solitária pelo direito de acesso aos próprios registos médicos expandiu-se gradualmente, formando uma rede internacional de solidariedade e ativismo.
A criação da Casa de Fuga em Berlim, em 1996, após 15 anos de luta, representou uma conquista particularmente significativa. Este espaço oferecia uma alternativa concreta ao tratamento psiquiátrico convencional – um lugar onde pessoas em sofrimento psíquico podiam encontrar apoio sem serem submetidas a medicação forçada ou diagnósticos estigmatizantes. Era a materialização de uma visão de cuidado baseada no respeito pela autonomia e dignidade humana.
O trabalho de Lehmann expandiu-se ainda mais através da Rede Europeia de Utentes e Sobreviventes da Psiquiatria (ENUSP – European Network of Users and Survivors os Psychiatry), ligando pessoas com experiências semelhantes por todo o continente. Através de publicações, conferências e redes internacionais, contribuiu para desenvolver um corpo de conhecimento alternativo, baseado na experiência vivida dos sobreviventes da psiquiatria. O desenvolvimento destas redes internacionais pode ser visto como uma resposta ao isolamento e à fragmentação causados tanto pelo trauma histórico quanto pelo trauma psiquiátrico.
A interseção entre o trauma coletivo do nazismo e o trauma pessoal da violência psiquiátrica tornou-se ainda mais evidente ao longo da sua jornada ativista. Um dos seus laços mais significativos foi com Dorothea Buck, sobrevivente tanto da esterilização forçada durante o regime nazi quanto dos eletrochoques do sistema psiquiátrico do pós-guerra. Lehmann encontrou aliados importantes entre aqueles que haviam resistido ao nazismo também entre profissionais. Por exemplo, o psiquiatra Rudolf Degkwitz, que havia sido preso pela Gestapo por se opor ao programa de assassínio em massa nazi, foi também um dos poucos profissionais a reconhecer abertamente os efeitos nocivos dos neurolépticos. Esta conexão entre diferentes formas de violência institucional – do nazismo à psiquiatria coerciva – não era coincidência. Como Lehmann viria a compreender, os sistemas de opressão partilham uma mesma lógica de desumanização e controlo, seja através da violência explícita ou da coerção química.
Hoje, décadas depois daquele internamento traumático, o legado de Peter Lehmann continua a inspirar novos ativistas e a demonstrar que é possível não apenas sobreviver ao trauma psiquiátrico, mas transformá-lo em força pessoal e coletiva para levar a cabo uma transformação sistémica. A sua história lembra-nos que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, existe sempre a possibilidade de transformar a dor em poder, e o sofrimento individual em luta por um mundo mais justo e humano. É um testemunho de como os traumas – sejam eles pessoais ou coletivos, históricos ou contemporâneos – podem ser elaborados através de uma práxis que busca não apenas a cura individual, mas a transformação das próprias estruturas que perpetuam a violência.
Tiago Pires Marques, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Obras selecionadas de Peter Lehmann
Peter Lehmann (org.): Coming off psychiatric drugs: Successful withdrawal from neuroleptics, antidepressants, lithium, carbamazepine and tranquilizers. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing. Última edição atualizada do e-book: Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing 2024. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/withdraw.htm. Edições em francês, alemão, grego e espanhol ver http://www.peter-lehmann-publishing.com/coming-off.htm
Lehmann, Peter / Newnes, Craig (eds.) (2021): Withdrawal from prescribed psychotropic drugs. E-book. Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing. Última edição atualizada do e-book 2024. Informação online http://www.peter-lehmann-publishing.com/withdraw.htm. Edição impressa: Lancaster: Egalitarian Publishing 2023. Informação online em https://www.egalitarianpublishing.com/books/withdrawal.html
Stastny, Peter / Lehmann, Peter (eds.) (2007): Alternatives beyond psychiatry. Berlin, Eugene & Shrewsbury: Peter Lehmann Publishing. Edição atualizada do e-book: Alternatives beyond psychiatry. The great book of alternatives to psychiatry around the world. Berlin & Lancaster: Peter Lehmann Publishing 2022. Informação online em http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives-beyond-psychiatry.htm / Informação sobre edições em alemão, grego e marata ver http://www.peter-lehmann-publishing.com/alternatives.htm
Lehmann, Peter (2024): “Psychiatry stripped naked: Current human rights violations in psychiatry in Germany, Greece and the rest of the world”, Journal of Critical Psychology, Counselling and Psychotherapy, vol. 24, pp. 16-37. Recurso online http://www.peter-lehmann-publishing.com/articles/lehmann/pdf/stripped-naked.pdf
Como citar este texto:
Marques, T.P. Da Dor ao Ativismo: A História de Peter Lehmann e a Transformação do Trauma. InfoTRAUMA, 25.