Este pequeno ensaio tem por objeto analisar três personagens do Brasil Colônia: Jacinta de Siqueira, Francisca da Silva e João Manso Pereira, que, embora estejam inseridos em contextos e realidades temporais diversas, têm em comum a cor da pele. E, mesmo sendo negros em uma sociedade racista e escravista, conseguiram, em certa medida, transpor barreiras raciais. Jacinta de Siqueira e Francisca da Silva foram mulheres poderosas na mineração, com grandes plantéis de escravizados. Manso Pereira, por sua vez, alcançou uma posição social avantajada a partir da erudição e do estudo.
Gesto pedagógico colonial e a construção do outro
Para tal análise iremos nos apropriar do modelo teórico apresentado por Danilo Briskievicz, denominado gesto pedagógico colonial. Esse gesto diz respeito a uma estrutura colonial, patriarcal e racista, que ensinaria os lugares sociais de determinados corpos, conjuntamente as limitações de cor e/ou gênero (BRISKIEVCZ, 2021, p. 268). Esse é um movimento típico do colonialismo europeu que, de forma geral, passa a lidar com o mundo a partir de uma perspectiva maniqueísta que busca definir o outro como o oposto de si (BHABHA, 1998). Frantz Fanon e Edward Said defendem essa tese. O primeiro tratando da criação do negro, através de uma projeção negativa realizada pelo branco (FANON, 2008, p. 90-107), e o segundo demonstrando, a partir da invenção de estereótipos sobre o mundo oriental, a criação de um outro a ser explorado (SAID, 2007, p. 14).
Esse modo binário de determinar o “nós”, civilizado e branco, em contrapartida, ao “outro”, selvagem e de cor, foi transportado para o modelo colonizador português, com uma adição singular: a mestiçagem. Embora a existência de uma massa mestiça incomodasse e amedrontasse os dirigentes portugueses, como afirma Laura de Mello e Souza (1986, p. 107), Portugal não tinha condições populacionais de realizar o empreendimento colonial, por isso, precisaria aceitar aquela população indigesta (SOUZA, 1986, p. 115). Para tal, a colonização atribuiu qualidade aos corpos produzidos. Em uma cadeia hierárquica teríamos ao topo, sempre, o homem branco, colonizador, a figura de maior privilégio (MEMMI, 1998, pág. 42). Em seguida, sucessivamente, teríamos o branco de segunda, ou o branco da colônia, o pardo, o mulato, o cabrito e o crioulo.
A distinção de pardo e mulato está mais relacionada à capacidade de normalização dos corpos, do que a visualidade, ou seja, o tom da pele. Quando os filhos mestiços se comportavam de modo reprovável eram definidos como mulatos, quando se comportavam bem, segundo a etiqueta cultural branca, eram denominados pardos (PESSOA, 2018). Os cabritos eram aqueles misturados com os indígenas, tão inferiores quanto os crioulos, negros retintos nascidos no Brasil (FURTADO, 2003, pág. 49). Essa hierarquização dos corpos não deve, todavia, ser entendida como uma leitura presente sobre o passado. Era uma hierarquização consciente. Gilberto Freyre, por exemplo, demonstra, como havia a compreensão de que a mulher branca era para casar, a mulata para o sexo e a crioula para o trabalho (1997, pág. 10).
Personagens
Há, nessa frase, uma hierarquia e uma definição de lugares fixos para determinados corpos. Esses lugares, cercados por barreiras raciais e de gênero, eram muito dificilmente superados. Ocorreram casos, é evidente, de sujeitos que conseguiram superar suas categorias e gozar de certos privilégios em suas respectivas épocas. João Manso Pereira (1750 – 1820), por exemplo, mesmo sendo homem pardo conseguiu tornar-se um químico e professor régio, adquirindo para si a Ordem de Cristo. Seu nome está incluído em duas grandes obras que tratam de homens ilustres do Rio de Janeiro[1] (FILGUEIRAS, 1997). Já Francisca da Silva (1732 – 1796) e Jacinta de Siqueira (1680 – 1751) foram duas personagens importantes na mineração diamantífera, tornando-se, a partir de suas riquezas, damas da alta sociedade, com enorme prestígio social (FURTADO, 2003; BRISKIEVICZ, 2021).
Não podemos cair, todavia, nas falácias da meritocracia ou da democracia racial. É preciso nos perguntarmos a que custo esses três personagens conseguiram ascensão social? O que era preciso fazer para alcançar essa alta posição? De fato, os três pertenceram a ricas irmandades, foram enterrados aos chãos de opulentas igrejas, e deixaram pagas várias missas por suas almas. Mas, como? Essas perguntas complexas não serão respondidas neste curto ensaio, mas apresento uma hipótese, em alinhamento às concepções fanonicas.
Adotar os padrões do outro: um jugo traumático
Em Pele negra, máscaras brancas (2008), Fanon demonstra como os colonizados sofriam de diversos traumas psicológicos que tinham em sua origem o duplo-ódio da pele negra[2]. Embora o autor esteja inserido no século XX, em uma realidade de colonização francesa, na Argélia, seus escritos em muito contribuem para a análise do caso brasileiro. Já que, mesmo que inconscientemente, os três personagens aqui tratados tiveram que passar por processos de embranquecimento. Não apenas na dimensão estética, mas também cultural, tornando-se branco ao adotar os códigos, a cosmopercepção, do colonizador.
Nesse sentido, não é raro encontrar registros educacionais no Brasil Colônia, em que o estudante entrava “de cor”, na maioria dos casos sendo pardo (FONSECA, 2007, pág. 179; 197 – 198), e ao formar-se era descrito no registro, agora, como “de alma branca” (FONSECA, 2007, pág. 203). Esse pode ser o caso de João Manso Pereira que dominava com grande brilhantismo todo o código intelectual português. Sabia ler latim, grego, hebraico, francês e se queixava de sua dificuldade pessoal no inglês (FILGUEIRAS, 1997). Francisca da Silva e Jacinta de Siqueira também dominavam os códigos à sua maneira. Ambas tiveram enormes plantéis de escravizados e possuíam casas luxuosas, até mesmo para os padrões da época. Reuniam objetos que as permitiam se inserir na cultura branca, assumindo esses hábitos e tornando-se damas (FURTADO, 2020, pág. 47).
Somando-se a isso, Fanon demonstra como as mulheres negras subiam na hierarquia social por meio da relação com homens brancos, passando a adentrar no mundo branco (FANON, 2008, pág. 65). Esse é o caso de Francisca da Silva e Jacinta de Siqueira. A partir do relacionamento de Francisca da Silva com João Fernandes de Oliveira, a alforriada teve acesso a toda uma rede de sociabilidade branca e pode usufruir e expandir um patrimônio inicial. Isso não a torna dependente de Fernandes de Oliveira, pelo contrário. Afinal, mesmo com a volta do contratador para Portugal, ela continuou ativa no comércio e aluguel de cativos (FURTADO, 2020, p. 47-48).
Da mesma forma, Jacinta da Siqueira se utilizou de seus vários amantes para impulsionar seus negócios e interesses. Sabe-se que ela havia chegado no Serro já com vasta escravaria, e que se relacionava com o capitão Antônio José de Campos Lara, seu antigo senhor. E graças a essa relação ela teve acesso a lavras privilegiadas e conseguiu fazer com que a colonização do Serro fosse mais próxima de suas terras. Também se relacionou com o sargento-mor Lourenço Carlos Mascarenhas de Araújo, e outros homens importantes da região. Ela era protegida desde a juventude por homens opulentos e transitava como ninguém entre os membros da elite bandeirante: paulista e baiana. Ela soube se utilizar disto para adentrar no mundo dos brancos (BRISKIEVICZ, 2021, p. 287 – 289).
Nesse sentido, como bem diz Briskievicz, esse gesto pedagógico definidor de lugares sociais poderia ser alargado e modificado (BRISKIEVICZ, 2021, p. 268), não sendo essa uma tarefa fácil para determinados corpos. Todos os indivíduos aqui analisados tiveram que adotar padrões culturais brancos, ganhando por um lado a ascensão social, e perdendo identidade. No sentido de que, se os padrões culturais brancos são definidos como superiores aos padrões negros, esses indivíduos tinham que aceitar sua situação de inferioridade. Realidade traumática, e, a partir disso, tentar alcançar pela intelectualidade, ou pela riqueza, o topo da cadeia hierárquica: o lugar do branco. Frente a um sistema tão traumático, é preciso uma leitura complexa. Se por um lado esses indivíduos aceitaram o sistema colonial, eles também são representantes da transgressão, assumindo lugares que lhe foram, historicamente, excluídos.
REFERÊNCIAS:
BHABHA, Homi K. A outra questão. O estereótipo, a discriminação e o discurso. In: O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo. Comparar versões, criar outras narrativas: a questão Jacinta de Siqueira e seu gesto pedagógico colonial, vila do Príncipe, MG, século XVIII. Revista de História Comparada, v. 15, n. 1, p. 267-299.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FILGUEIRAS, Carlos A. L. João Manso Pereira, químico empírico do Brasil colonial. Química Nova, v. 16, n. 2, p. 155-160, 1993.
FONSECA, Marcus Vinicius. Pretos, pardos, crioulos e cabras nas escolas mineiras do século XIX. Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 32ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1997.
FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
FURTADO, Junia Ferreira. Mulheres escravas e forras na mineração no Brasil, século XVIII. Revista Latinoamericana de Trabajo y Trabajadores, n. 1, p. 1-49, 2020.
MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
PESSOA, Raimundo Angelo Soares. Mulato ou pardo? – Brasil colonial. In: Mulatos na Sociedade Colonial. O arquivo nacional e a histórica luso-brasileira, 2018. Disponível em: <http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5118:mulatos-na-sociedade-colonial&catid=64&Itemid=371>,acessado em 11 de julho de 2023.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SOUZA, Lara de Mello e. Nas redes do poder. In: Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 2ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
NOTAS:
[1] BLAKE, Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro. 3º volume. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Conselho Federal de Cultura, 1970; e AZEVEDO, Moreira de. O Rio de Janeiro, Sua História, Monumentos, Homens Notáveis, Usos e Curiosidades. Volume II. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877.
[2] A partir de um processo histórico de negativação da pele negra, o sujeito negro introjeta e aceita essa potência negativa de sua própria pele. O primeiro ódio é o de sua pele negra, o segundo ódio nasce a partir da percepção de impossibilidade de tornar-se branco (FANON, 2008).
Créditos na imagem: Reprodução: Jacinta de Siqueira, que viveu na Vila do Príncipe, hoje cidade do Serro – Veridiana Scarpelli. Folha de São Paulo, 2023.
SOBRE O AUTOR