O “eu” que se expõe nas Metamorfoses da Humanidade
Exposição “Graça Morais: Metamorfoses da Humanidade”
Lisboa, Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, 22 mar. – 2 jun. 2019
A exposição Metamorfoses da Humanidade apresenta um conjunto de mais de oito dezenas de desenhos e pintura sobre papel da pintora Graça Morais.
Na literatura de estudos de museu, tem vindo a ser sublinhado o conceito de musealia enquanto objeto significante, cujas componentes semânticas devem ser exploradas no discurso museológico, descodificando os sinais menos evidentes ou conotativos (vd., por exemplo, Desvallées & Mairesse, 2013).
Isso não acontece nesta exposição, onde os desenhos de Graça Morais se sucedem sem o apoio de texto. De resto, a ausência elementos textuais ou outros descodificadores é norma em museus de arte contemporânea, deixando ao visitante-recetor a função de elaborar um discurso pessoal e íntimo face ao que lhe é dado ver. Nem sempre esta atitude, por parte do museu, é entendida como a mais adequada, dividindo-se entre aqueles que conferem à obra de arte a exclusividade da mensagem e aqueles que reclamam por chaves de leitura que permitam decifrar os respetivos códigos.
Aqui, a obra é a única evidência, em contraste com um fundo densamente (exageradamente?) branco do ambiente arquitetónico, chão, paredes, teto, apenas quebrado pela subtileza da esparsa decoração em estuques também brancos. Obriga-nos a olhar e a submergir no universo das imagens criadas por Graça Morais. Somos apenas nós, frente às imagens onde Graça Morais traça o mapa íntimo das nossas memórias e emoções. Por isso, este texto assume-se num tom (exageradamente?) pessoal, na esfera privada das sensações de quem vê e escreve sem a consciência da possibilidade de um recetor – para lá do que é comum e, certamente, muito para lá do que seria avisado.
Confesso que o espaço da ampliação do Museu do Chiado, onde são feitas as exposições temporárias, tem o efeito de me deixar oprimida, mais do que entediada, agoniada pelo predomínio do branco, numa reação que não consigo entender em quem prefere espaços contemporâneos, limpos e minimalistas. Não é um espaço onde me apeteça estar e ficar. Vou lá puxada pelo interesse que tenha numa ou noutra exposição.
Graça Morais é um motivo imperioso, inevitável. Porque gosto de me sentir rodeada por aquilo que desenha, que pinta, que representa. Que me representa. É também um motivo infalível: não me lembro de alguma vez não ter gostado de algum trabalho de Graça Morais, mesmo que me sinta mais projetada nalguns do que noutros.
O texto limita-se a uma nota introdutória, à entrada da exposição, junto à ficha técnica. É assinado pelos curadores Jorge da Costa e Emília Ferreira, em cujas palavras igualmente me revejo. E também raramente me projeto de forma tão intensa nas palavras de outros. Percorri a exposição sem o ler. Por isso, não foi induzida a sensação mais recorrente era a de me encontrar refletida naquelas obras como se fossem um espelho íntimo. E leio, depois:
“[…] estes desenhos […] oferecem-nos, como num espelho quebrado, os múltiplos reflexos dos nossos muitos medos quotidianos: a guerra, a exclusão, a perda absoluta, a fome, a morte. Em cada um dos trabalhos apresentados, como se em pequenos pedaços de um mundo estilhaçado, reconhecemos emoções que nos são íntimas”
Essa é a qualidade que me habituei a encontrar na obra de Graça Morais: a capacidade de “nos” (ou “me”) representar num traço que se me afigura simultaneamente lírico e vigoroso, sensível e telúrico. Uma pintura que sugere uma introspeção, não só da artista, como sobretudo a nossa, obrigando-nos a ver naquelas representações não o “outro”, mas o “eu”.
Não são as Metamorfoses da humanidade que aqui vejo expostas: são as minhas metamorfoses, os meus medos, as minhas angústias, as minhas lutas e as minhas derrotas.
Estes desenhos tornam-se definitivamente meus, porque neles me projeto como objeto (con-)sentido. Por isso, encontro neles obsessivamente a imagem do gafanhoto, esse inseto que traduz os meus medos mais arcaicos, a geometria angulosa das pernas encolhidas, a forma segmentada do corpo, a cabeça diminuta com grandes olhos, as mandíbulas, o ruído seco, a suspensão com que lhes adivinho o salto repentino, o toque áspero a pousar na pele.
Qualquer texto nestas salas seria uma intromissão desnecessária. Se a conceção desta exposição poderia ser uma tarefa ingrata para os curadores, no sentido em que lhes impede a criação de uma metanarrativa, é também o enorme privilégio de lidar com uma obra onde se elabora um diálogo simbiótico com o observador, cumprindo os desígnios da obra-aberta que se completa no olhar de quem vê.
Nunca este espaço me pareceu tão adequado à obra exposta. É o vazio torna o confronto mais inevitável e intenso, sem subterfúgios, tornando imperioso (e impiedoso) o olhar com que atravessamos o espelho.
No fim, sem invalidar as re-visitações da exposição que, aliás, se anuncia noutros espaços, fica-nos o belíssimo catálogo com o rigor gráfico e a marca estética de José Brandão e Susana Brito, do Atelier B2, e os belíssimos textos de Jorge da Costa (com uma epígrafe de Saramago), Emília Ferreira, Raquel Henriques da Silva e Jeanette Zwingenberge. Aqui, o texto permite-nos novas leituras do universo das imagens e todas as conexões fazem sentido, sem invalidar o “eu” que ali (me) encontrei exposto.
Referência bibliográfica:
Desvallées, A., & Mairesse, F. (Eds.). (2013). Conceitos-chave de museologia. Trad. e comentários de Brulon Soares e Marília Xavier Cury. São Paulo: Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus; Pinacoteca do Estado de São Paulo; Secretaria de Estado da Cultura.
Costa, J., & Ferreira, E. (Eds.). 2019. Graça Morais: Metamorfoses da humanidade = Metamorphoses of humanity (catálogo da exposição). Lisboa: Guerra e Paz; MNAC.