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O jogo e a bruxaria

Publicado em: O jogo e a bruxaria

 

ME DISSERAM que o que bell hooks chama de amor Judith Butler chama sabe-se lá do que e Silvia Federici chama de trabalho doméstico não remunerado. Entretanto, eu suspeito que cada uma delas esteja falando de uma coisa diferente…

 

De todo modo, o que me interessa não é discutir o sexo dos anjos, mas contar uma história sobre como a minha bisavó Sophia, entre as outras atividades domésticas que realizava, jogava cartas para as pessoas que a procuravam em busca de entender melhor alguma coisa que estivesse acontecendo nas suas vidas. Então, o jogo de cartas – pelo menos como eu entendo – poderia entrar nessa categoria do trabalho doméstico… Sobre remuneração, minha mãe me contou que ela não cobrava nenhum dinheiro, que nunca cobrou assim… Mas que Sophia fazia, sim, trocas. Então, quando ela abria o baralho para o sapateiro, ela trocava o jogo por um conserto de sapatos; para o leiteiro, por uma garrafa de leite; para a costureira, por um reparo em alguma roupa; para a doceira, por algum quitute. E assim por diante…

Desse jeito, ela enchia a despensa de comida e sustentava boa parte da economia da casa.

 

***

 

_ Comecei os trabalhos aqui, tá bom, minha Shiksa? E eu espero que você saiba que isso é uma psicografia muito particular e estranha… Então, aconteceu uma coisa que geralmente não acontece… Por algum motivo, a primeira carta saiu invertida. E alguma coisa me falou assim: “Deixa ela… Deixa ela assim, Sophia”. Eu não costumo jogar com cartas invertidas. A primeira pergunta que eu fiz foi sobre quem é esse homem na sua cabeça, no seu corpo e no seu coração, né? Sobre quem é esse seu homem… Eu abri três cartas pra ele. E vieram três cartas que acabam sendo contraditórias entre si. O Pajem de Espadas é representado por um rapaz jovem, com uma espada na mão. Que aqui nesse jogo é uma ferramenta de Morte… A espada ela é uma ferramenta pra ceifar a vida mesmo. A espada não protege exatamente, ela não é um escudo. O Pajem de Espadas é um jovem inocente. E, talvez mais do que inocente, ele seja imprudente. Num segundo momento, a gente tem a carta que é A Justiça, uma carta que fala por si só. Só que nesse momento ela veio sentada no meio do jogo, uma carta que tá amparando os dois lados, né? E tentando equilibrar como a libra que tá na mão esquerda dela, que ela julga impune… Eu acho que essa carta tá indicando muito como ele se vê. Como alguém muito justo, alguém muito honesto, alguém muito correto. E isso ele defende como comportamento e como moral pra ele. Não é um compromisso ético… É o que ele gosta que as pessoas acreditem que ele é. Porque a terceira carta que é o Seis de Ouros, que também veio invertido: é uma carta que tá indicando justamente o quão injusto ele é. Ele é egocêntrico. Ele é um tanto quanto ingrato. E ele não é aquela pessoa que se dispõe a ajudar sempre em algo sem ganhar nada em troca, né? Ele quer levar alguma coisa. Nem que seja um “Tá vendo, eu ajudei, muito obrigado”. Ele é uma pessoa pesada…        Eu embaralho sete vezes antes de tirar as cartas. E eu sempre reconto se alguma carta cai do baralho… Caiu O Mago, invertido, recontei. Quando tô embaralhando de novo caiu O Louco, também invertido. Tô embaralhando, embaralhando, embaralhando… Caiu uma carta que é muito propícia, que é o Cinco de Copas. Ela caiu invertida também. Eu pensei “Das ist Wahnsinn!”. Caiu uma no meu colo que eu não vi porque eu peguei antes. É… Ele tem alguma coisa com ele que protege ele. Mas não é boa, não. É pesada… Não sei nem se é uma coisa de maldade, de ruindade. Não é isso… Mas tem alguma carga muito negativa com ele que protege ele. Até o jogo… As minhas mãos tão quentes. Até o jogo pra eu saber quem ele é tá embolado.

_ Ele é um bruxo.

_ Nove de Espadas. Olha só… Invertido! A carta tá falando sobre o momento de agora, o que ele tá vivendo. E ele tá se sentindo extremamente injustiçado por alguma coisa que tá acontecendo. O Nove de Espadas fala sobre uma profunda tristeza. Um desapontamento e um fracasso. Só que quando ela tá virada pra cima é uma coisa real. Ela invertida me faz entender que ele tá se achando injustiçado. Dez de Espadas. Invertido…! O jogo dele sai muito carregado. Eu tô sentindo uma coisa muito estranha aqui. Que bom que eu realmente me preparei muito bem antes de descer pra fazer esse jogo… Eu vejo tristeza. Aflições. Lágrimas. Ele tá passando por um processo muito complicado. Na verdade, não existe לעזאזל nenhuma. É tudo coisa da cabeça dele… São tudo mishugas! Ele é uma pessoa que tem uma dificuldade muito grande em reconhecer os próprios erros. Não é uma pessoa capaz de pedir desculpas, não. É uma pessoa muito difícil mesmo de se lidar, de se trabalhar… Ele tá num momento difícil porque todos vocês aí embaixo estão vivendo um momento difícil. E ele tá se achando um pouco injustiçado.

_ Que coisa mais maluca, minha Bubby! E a senhora desceu do céu pra me contar isso tudo?

_ Ô, bubale, espero não estar te falando é nenhuma besteira… A terceira carta é uma carta que fala sobre essa questão de como as coisas vão se encaminhar. E ele vai sair dessa… Ele vai conseguir se libertar desse momento. Mas por meio de muito desgaste… Ele vai se desgastar muito, mesmo. Ele vai sair, ele vai conseguir visualizar o problema de alguma maneira e ele vai sair. Não vai admitir algumas coisas, não vai admitir o que é coisa da cabeça dele. E esse “cruzar” vai ser literalmente matar um leão. Ele vai se desgastar muito…

_ Ele parece mesmo muito desgastado…

_ Mais uma carta invertida! O Dois de Paus. Sabe esse momento que ele vai passar? Ele vai passar… Mas vai ficar um vestígio na alma dele, profundo. Esse Dois de Paus aqui tá ligado à doença, né? Não vai ser física. Mas pode vir a se tornar física pela somatização. Ele é o principal inimigo dele. Tanto é que o que tá aparecendo aqui é uma questão do pensamento o tempo todo. Chorando. Por conta dessa crença na injustiça, que é tudo um jogo da cabeça dele. Porque ele é uma pessoa pesada e negativa. E vai ficar uma depressão ou talvez outra coisa. Que ele vai ter que tratar pro resto da vida dele.

_ Que loucura esse jogo. Ele tem bondade nele e eu vejo… Não queria que ele passasse por nada assim, não.

_ Olha o que eu falei… Fechando o jogo. A carta central faz a síntese desse momento que ele vive. É… Eu vejo que ele tá trabalhando, ele tá fazendo um monte de coisa que na realidade não tem fundamento. Ele tá fazendo um monte de coisa que não vai dar em nada… E é por conta desses trabalhos que não dão em nada que ele se acha traído e mal falado pelas costas. E isso vai fazer com que ele realmente tenha que trabalhar alguma coisa pro resto da vida dele. Seja pra se curar espiritualmente, seja pra se curar mentalmente. Ou pra… Eu não tô falando em cura sob um olhar Ocidental, não. Eu tô falando de cura muito mais como um processo de mergulho em si do que qualquer outra coisa. Você perguntou sobre ele na sua vida… Eu acho que o jogo indica um peso muito grande. Eu não sei se ele é o tipo de pessoa que tá em posição de fazer bem a outra pessoa. Mas aí é que entram o seu arbítrio e o dele… A carga dele é muito densa, a carga dele é muito pesada. Eu nunca tirei um jogo com tantas cartas invertidas! Acho que é a primeira vez. De cinco cartas quatro saíram invertidas. Então, talvez o ideal seja… Sabe aquele conceito dos bíblias, do livramento? Talvez seja melhor você aceitar isso… Kneina hara! Que Deus te proteja de todo o mal!

_ Eu acho que ele sabe que não tá em condição de fazer algum bem pros outros.

_ Eu… É, seichel ele tem… Miolos! Ele é inteligente, embora a arrogância dele também seja muita falta de inteligência. Ele pode mesmo ter bondade dentro dele. Até porque ninguém é mau nem bom. Eu não duvido da sua fala de que ele tenha algo bom nele e que você veja isso. O problema é que ele tá jogado num cenário tão pesado que nem ele consegue perceber as qualidades dele… Então as coisas estão assim. É um jogo bem denso, um jogo bem pesado. Você falou que ele é um bruxo. Então o que eu tô sentindo aqui provavelmente são energias ligadas a ele. Tentando proteger ele. Tentando proteger a imagem dele. Mas não tem nada de mal sendo feito, nay… É só um jogo de tarô. Que loucura, minha meidel, que loucura! Que jogo denso…

_ Eu não sei bem mais o que dizer nem perguntar pra senhora… Eu sei que ele tem uma luta interna pra romper com certas coisas.

_ Então, o que acontece é que ele precisa dar outro sentido pras coisas que ele passou na vida até aqui. Não só pra história individual dele, mas também pra história das pessoas que estão em torno dele. Principalmente dos mortos que ele carrega no peito. E dos afetos que ele acha que foram negados a ele… Porque não foram. Dar outros sentidos pra essas memórias que mais se parecem com pesadelos agora. Será que ele tem como entender isso tudo?

_ Não sei, mas acho que sim. Já eu entendi totalmente o livramento. Mas não sou bíblia, sou quimbandeira. Não quero me livrar dele. Eu quero curar ele, mami. Vuz machs da?!

_ Agora me deu vontade de rir, filha!  Olha a carta que fala da identificação de vocês aí: O Diabo. É uma energia que é muito parecida. É uma energia que é muito… É uma energia de identificação, né? Assim, você tem todo direito de querer ficar perto, de ajudar, mas você não é obrigada. A Roda da Fortuna tá aqui falando disso. É o arbítrio. Você fica se você quiser… O Pagem de Pentáculos… O Pagem de Ouros… Ele tá falando de meditação, de concentração, de observação. Talvez se vocês dois estivessem em um momento bom vocês poderiam mesmo ter juntado essa capacidade de observar que os dois tem de sobra, mas ainda como um potencial que não chegou realmente a florescer, nem em um e muito menos no outro… Eu tô falando de realmente refletir, de ir além. E aí eu vejo muito a questão profissional confluindo. Em outro aspecto, essa energia descamba muito pro sexo. E talvez seja isso o que mais deixa ele assustado. Ele tem medo do que pode vir a acontecer com esse canal do sexo aberto pelo Diabo. Então… Assim, Nanda… A decisão cabe a você, né? A Roda da Fortuna tá amparada por diversos seres celestiais. Que vão ajudar a fazer a purificação e a limpeza desse caminho. Ou te proteger desse caminho… Mas você tem que definir: se você quer que ele saia da sua vida. E aí esses seres celestiais eles vão te ajudar… A sua banda vai te ajudar, né? Da mesma forma como se você quiser ajudar ele a sua banda também vai te ajudar. Agora, ele tem que querer… Você não é dona do arbítrio dele.

_ Eu não sei se isso é amor… Eu não sei mais se isso é um sentimento normal… Eu não sei mais se não perdi de vez a saúde. A senhora, morta, tá me ajudando muito mais do que muito vivo! Shkoiach! Que a sua força na morte seja redobrada!

_ O Diabo é a quebra do status quo, né? É o primeiro rebelde… Ele só achou que alguém mandando em tudo não era justo. É uma energia transformadora o que ele traz. É uma energia de quebra das nossas crenças.

_ Agora quem tá rindo sou eu. Então, pelo que entendi, o resumo do jogo é que ou eu peço pro demônio aproximar a gente de vez ou pros anjos afastarem e levarem ele embora.

_ Eu acho que o resumo do jogo é: que vocês estejam no caminho que for pro bem. Acho que é por aí…

_ A senhora se lembra do último jogo que me fez, no último Dia das Bruxas? Se lembra daquele homem que a gente viu no outro jogo, que tava no meu caminho e que me trazia amor? Aquele homem não é ele, né?

_ Não, minha filha. Aquele homem, infelizmente ou felizmente, é outro…

_ Então, o que a senhora tá querendo dizer é que eu vou ter que escolher, cedo ou tarde, entre o amor e o homem que eu amo? Isso é como estar diante de uma encruzilhada e não faz nenhum sentido!

_ Mas nada faz sentido. É tudo coisa de Deus, vai entender as encruzilhadas… Umain!

 

***

 

Embora eu tenha começado a escrever falando das mulheres esse texto, que não por acaso foi escrito em outubro – quando o saci e as bruxas acendem uma fogueira na mata em torno da qual dançam juntos – é dedicado aos homens da minha vida e, sobretudo, ao meu pai. É porque foram sempre eles, muito antes das mulheres, que me ensinaram que no mundo existia bruxaria. Então, eu não poderia cometer a falta de não reconhecer que sem o meu pai eu jamais teria descoberto qualquer coisa sobre a vida de Sophia… E, se alguém cometeu alguma falta, não peça perdão a mim, não. Peça perdão ao Tranca-Rua… Porque, como diz o outro: “Eu não sou Deus pra ter que perdoar”.

 

***

 

E, segurando as mãos do Tranca-Rua, eu digo:

 

 

Aqui e com essas palavras eu rompo com o que me fizeram.

Sou livre, posso amar e ser amada.

 

Assim foi!

Assim é!

Assim será!

 

 

 


REFERÊNCIAS

 

Sem referências.

Se ache sozinho.

 

 

Mas (quase sempre) vale ouvir

 

Eu não sou Deus
Pra ter de perdoar

Ao lado do lado direito do peito
Dói o coração
Na frente dos olhos do mar da Bahia, morena
Meu canto sem paz
No peito calado um bocado de verso
No olhar tristonho jeito de perdão

Mas não sou Deus pra ter de perdoar
Eu não sou Deus pra ter de perdoar

Se não me bastassem problemas de amor
Papéis importantes confundem a mente
É gente correndo, é contra corrente
Corrida do ouro, progresso e sucesso
Meu peito poeta rejeita esse jeito
E vai enfeitando de amor o meu verso
Entenda o meu samba, seja como for
Eu vivo na vida correndo pro amor

Mas não sou Deus pra ter de perdoar
Eu não sou Deus pra ter de perdoar

 

 

 


Créditos na imagem: Arte de Michael de Bono, 1983.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Fernanda Miguens

Fernanda Miguens é professora de inglês, taróloga e tradutora de artigos e livros científicos, romances de banca de jornal, poesia sufi e histórias pra crianças.

Fonte: O jogo e a bruxaria
Feed: HH Magazine
Url: hhmagazine.com.br
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