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O Pescador & a Velha

Publicado em: O Pescador & a Velha

 

Vela preta

 

É uma receita de inalação. De chá de eucalipto com alfazema.

 

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É uma receita de chá. De erva-doce e folha de maracujá, todas elas secam. Elas gostam de ferver bastante na chaleira antes da hora em que ficam prontas. Coloca também um pouco de semente de funcho e mel (elas não são a mesma planta a erva-doce e o funcho não, eu acho, se você olhar bem são bem diferentes a semente de uma e o pistilo da outra).

 

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É uma receita de defumador. Na falta de um nome melhor, a gente pode chamar isso aqui de mirra da terra… Tem também cascas de alho. Folha de louro e esse bambuzinho chinês”, que a rigor é uma espécie de aspargo selvagem. É tudo seco e tá bom pra queimar em um incensório com carvão.

 

Vela verde

 

Eu cozinho pra primeira hóspede que chega entre o Dia das Bruxas e o Dia dos (Fiéis) Finados… Essa é uma receita de sopa de ervilhas secas com batata, cenoura, em um refogado de cebola e alho. Coberta com cheiro verde e azeite antes de comer. O pão artesanal e o sal rosa colorem e perfumam a cozinha. Com linguiça de costela de boi e um vinho pra esquentar a friaca de 13 graus. Açafrão, páprica doce e páprica picante. A hóspede dorme aquele sono bom de morta depois de comer, não consegue levantar da cama. Viva os mortos! Só os mortos realmente descansam… É claro que no dia seguinte ela acorda renovada, quando a bruma se dissipa um pouco e ela vai jogar tarô na mesa da cozinha enquanto a outra aqui passa o café.

 

Vela vermelha

 

No dia dois de novembro, eu faço na minha cabeça sete anos de santo torto, de santo invocado a partir da palavra escrita, da cozinha e da conversa em casa. E claro que tudo começou em um dia dois de novembro embaixo de uma chuvinha fina quando eu fui pra minha primeira reunião de orientação. Eu entrei na casa do meu professor, de vestido preto de bolinha branca. E fiquei tonteada, foi assim? Pedi um copo de água, por favor, me chegou um copo de cachaça. Dali pra frente a minha escrita foi toda brincadeira, alegria e abismo, dança até estourarem bolhas nos meus pés. Dali em diante a minha escrita foi uma escrita da vela acesa…

 

Vela amarela

 

Então, é claro que a escrita sobre as polacas foi uma ficção ou testemunho a partir de inúmeras falas de fantasmas, meus e dos outros, das outras mulheres nas quais eu me amo e me odeio. O meu labirinto foi o cemitério, onde me perdi e me encontrei, onde eu descobri que eu era (ao mesmo tempo em que eu não era): Santa Bárbara, Exu Caveira, um menino muito pequeno e cheio de purpurina dourada atravessando a faixa de pedestres, Taninha dos Milagres, Maren e Selarón no São João Batista, a chefa do Caingá, uma xícara de chá de favas de túmulo, um dos pares de sapato que uma mulher da rua perdeu na rua.

E também as muitas entradas e saídas, as fontes e os poços de água com placas de musgo e cadaverina, os bolsões de mata e as casinhas entre as sepulturas, os buracos-absurdos em que eu caí.

_ Existe como voltar dele, como sair do labirinto?

 

Vela rosa

 

Enquanto assistimos a live e conversamos eu tô fechando as contas de um colar feito de pérolas de plástico e com uma concha de lagoa que dei de presente pra minha criança. Ela tá esperando, ansiosa, o pavê de chocolate ficar pronto.

 

Aguardamos e eu abro um livro – que meu professor me emprestou. E reencontro, em uma história recontada pelo professor Agenor, uma história que – até então – eu conhecia como sendo uma história sufi envolvendo um macaco, uma garrafa e uma cereja, embora as duas histórias fossem de fato diferentes e iguais de muitas formas, ou não?

 

OSSÁ

 

Primeiro Ossá

 

Ebó: obi, metal amarelo para usar nos braços, peixes e preás etc.

Está registrado na história do passado do mundo que, no princípio, o carneiro, o galo, o bode e outros animais eram todos oluôs de largo saber e que, um dia, Olofim mandou convidar todos ao seu palácio para uma audiência conjunta.

Ali chegando, todos começaram o jogo e, em dado momento, tiraram um ebó que devia ser feito com um orangotango, um macaco. É de se notar que estes sujeitos tiraram esse ebó já com espírito de perversidade, para vingar-se desse macaco que era seu rival oculto.

Imediatamente, Olofim mandou pessoas competentes na arte de caçar para pegar o orangotango. Armaram no mato cinquenta ciladas, cada uma com uma cuia cheia de obis. De fato, os macacos gostavam muito de obi e assim foi que o orangotango caiu no alçapão de cuia. Este, que já tinha feito o ebó com muitos metais de braços, foi indo bem devagar até se safar e saiu sutilmente por entre as moitas.

Os caçadores, vendo a cuia vazia, pensaram que o macaco estava preso. Com a presença de todos, abriram a armadilha e qual não foi a surpresa de não encontrar o orangotango dentro. Nesse momento, Olofim ordenou que agarrassem o próprio carneiro e seus companheiros para, sem demora, fazer o despacho, pois não podia mais tardar o seu ebó com uma nova caçada.

Assim foi que todos começaram a contar esta história. O carneiro e seus amigos que queriam se livrar do inimigo orangotango sofreram o seu revés, sendo, eles próprios, utilizados no ebó. E Olofim cumpriu seu preceito, o qual devia fazer de qualquer forma.

Esta narrativa tão empolgante evidencia e aconselha a máxima cautela para que a pessoa interessada nesse quadro do Odu se afaste de uma cilada premeditada, ou de perigo oculto e iminente. Tendo cuidado e prudência, é possível livrar-se de todo e qualquer perigo, dissabor e constrangimento.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Caminhos de Odu: os odus do jogo de búzios, com seus caminhos, ebós, mitos e significados, conforme ensinamentos escritos por Agenor Miranda Rocha em 1928 e por ele mesmo revistos em 1998 organização de Reginaldo Prandi; [ilustrações de Pedro Rafael] – terceira edição – Rio de Janeiro: Pallas, 2001. p. 109.

 

Encruzilive do dia 2 de novembro

Corão Sagrado

 

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Fernanda Miguens

Fernanda Miguens é professora de inglês, taróloga e tradutora de artigos e livros científicos, romances de banca de jornal, poesia sufi e histórias pra crianças.

Fonte: O Pescador & a Velha
Feed: HH Magazine
Url: hhmagazine.com.br
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