Três Marias no céu, três estrelinhas alinhadas visíveis de qualquer hemisfério, muito maiores que o Sol e há cerca de 1.500 anos luz da Terra. Na mitologia grega Órion foi morto por sua amada e, ao perceber o engano, teria colocado as estrelas ali, com objetivo de não ser esquecido. Na tradição cristã, porém, há dois significados: a figura dos reis magos e as três mulheres que visitaram o túmulo de Jesus, na ressurreição. Cartograficamente elas nascem sempre no cardeal leste e se põe no oeste, isso revela que essas estrelas também serviram de orientação para navegações. Antes de saber dessas coisas eu já sabia, e sempre ri dessa história, que meu avô Alexandrino teria dito para minha avó, Joana, que não importa quantas mulheres tivessem como filhas, todas elas, sem exceção, se chamariam Maria.
A primeira, Maria das Mercês, em homenagem a Nossa Senhora das Mercês, filha mais velha desse casal, morreu em pleno contexto de pandemia, não da doença que tem ceifado tantos mas de outras tantas complicações. Após muitos dias no hospital, os últimos deles em coma e muitos anos do final da sua vida, doente. Dentre as suas morbidades, algumas bem comuns na família, teve diabetes (que a fez amputar alguns dedos do pé esquerdo há cerca de dois anos); mal de Parkinson, além de problemas de pressão alta e coração. E num dia de manhã, antes do sol nascer, morreu.
A notícia chegou pelo WhatsApp, numa curta e chorosa mensagem da prima, filha mais nova, que desde sempre ficou imbuída dos cuidados com a mãe, juntamente com o seu único filho, uma mãe solteira. Tia Mercês teve quatro filhos. Como boa mineira e católica, onde os nomes dos filhos tem que “harmonizar” – sejam com o santo do dia em que nascem ou pela mesma letra, os quatro filhos tem o nome com a mesma letra: D. São eles: Darlaine, Dorcivalda, Darli e Dielson, esse último, o único homem. Assim seguiu a sina que recebeu como capitania hereditária: seu nome o mesmo de suas irmãs. Seus irmãos homens dos respectivos santos do dia. Os demais, todos, com a mesma letra inicial.
Tia Mercês se autodenominava “a mulher mais bonita do mundo” e, considerando a perfeição que era o seu nariz, conhecido entre os íntimos como “narizinho de cheirar peido”, ela era de fato, uma mulher bonita. Adorava receber os sobrinhos com terríveis e doloridos beliscões, sobretudo quando esquecíamos lhe pedir a benção. Exigia isso com autoridade de tia mais velha questão que bordou como prática na sua capitania nuclear entre os netos, de modo forte, fazendo com que na sua árvore, filhos e netos se saudassem assim, a todos os visitantes e transeuntes vissem, em qualquer circunstância. Aquelas crianças na festa davam dó. Ao chegar aos almoços de família, ainda muito pequenos, gastavam um tempo enorme de mão em mão, pedindo a benção. Depois todo cortejo ao sair, sem se rebelarem. Qualquer encontro festivo era aquela romaria de netos dela, pegando na mão de todos, de modo que passavam quase a metade do tempo das festas saudando as pessoas, “benção” pra cá”, “Deus de abençoe” pra lá, acompanhados pelos atentos olhos dos seus orgulhosos pais e mães.
Chegou a Goiânia nos anos 1950, menina-moça, junto com os seus pais e desde sempre ajudou a cuidar dos irmãos menores: tarefa árdua para as mulheres de família, que lhes faziam desejam os casamentos com urgência, ledo engano, já que essas mulheres nunca tiveram diminuição de fardo. Só a morte é o fim do fardo. Mesmo assim, viveu com o marido até o falecimento dele. No contexto daquele velório, daquele marido grosseiro com os da casa e amável com os de fora, uma grande festa de folia de reis se realizou. A chegada da bandeira do Divino, cachaça e muita comida, pessoas chorando e bêbadas, confusão e certo tom de festa que amenizava tudo. As narrativas eram de que o morto estaria feliz com a despedida. Mas no caso dela, tia Mercês, a coisa se deu de outro modo.
Morrer em meio a uma pandemia ceifou esse tipo de despedida. Sobrou a despedida rápida, o choro contido, a ausência de abraços e seus netos não puderam saudar as pessoas com os pedidos de benção, o gesto final que lhe demarcava a herança. Ali, nas franjas urbanas da cidade, naquele cemitério velho de enterrar migrantes, ocorreu a despedida final, silenciosa e abafada pelas máscaras. No mesmo lugar onde antes a Festa de Reis melodiosamente substituiu a marcha fúnebre, nos velórios de seu marido e filha, precocemente falecidos, se ouviam os barulhos dos narizes assuando e abafados pelas máscaras. Os túmulos com sua estética diversa, quase uma bricolagem: alguns com contra pisos baratos, cerâmicas que se compram por míseros valores, flores de plásticos cafonas e de cores diversificadas. Outros apenas com uma lajota de concreto em cima, tomados de braquiária, caruru-de-espinho e titiricas e outras plantinhas vulgares que grudam na roupa.
O silêncio do cemitério se quebra nos passos de um cortejo familiar, cordão de irmãos, sobrinhas, genros, filhos e netos da tia. A pá do coveiro que gentilmente abriu novamente o caixão para o último olhar de todos, inclusive da filha mais nova, inconsolável, com uma toalhinha molhada de lágrimas com ou sem o vírus que nos impediu os abraços. Uma ripa de madeira velha empurrou o caixão para dentro de um buraco com terra vermelha. Antes disso foi retirado um saco azul, provavelmente os restos mortais dos outros da família, que aos olhos de todos passou percebido. O caixão escorregando pela ripa de madeira, buraco adentro. Depois, o saco azul foi acomodado ao lado, enquanto um cachorro vira latas passava por ali, sujo, feliz e pulguento.
Ao lado de outro túmulo, o cachorro também esperou, enquanto alguém teve a ideia de começar a cantar, muito desafinado, a música “Segura na mão de Deus” olhando a letra pelo celular. Fotos coloridas protegidas por plásticos, nomes e datas faltando letras, lajes quebradas, um pedaço de urna atirado em uma pilha de outras coisas, a terra vermelha do sertão que encarde tudo. No cemitério jaz mais um número, sob o som consternado do choro da filha, como a ária da cantora solista no último ato de uma ópera trágica.
Créditos na imagem: Três Marias, de Candido Portinari.
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