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Por que os/as historiadores/as devem discutir o Artigo 13?

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A nova Diretriz de Direitos Autorais, aprovada em 26 de março de 2019 pelo parlamento europeu, tem passado quase despercebida no campo das humanidades no Brasil. Apesar de parecer distante, o caso dessa aprovação pode incutir em repercussões diretas no país. Não apenas do ponto de vista do acesso a documentações em plataformas online, a aprovação da nova diretriz atinge diretamente a produção de conteúdos para a internet que sejam publicados na União Europeia. Apesar da recém aprovada legislação diz resp

eito, em especial, a produtores de conteúdo para a web, seu impacto envolve diversos setores da sociedade, inclusive artistas e jornalistas, ao redor do mundo.

Não é minha pretenção fazer uma retrospectiva exaustiva das discussões em torno da aprovação de tais diretrizes, inclusive pois sua implementação ainda depende da formulação de legislações específicas dos países membros da União Europeia, que devem se adequar ao que foi decidido. Contudo, interessa principalmente os debates e tenções no que diz respeito a prática dos historiadores públicos destes países, assim como de demais produtores de conteúdo para os meios digitais. Tais figuras serão impactadas especialmente em função de um dos artigos presentes nestas diretrizes, popularmente conhecido apenas como artigo 13, que passou a atribuir a responsabilidade sobre violações de direitos autorais para as plataformas, e não mais aos produtores daquele conteúdo colocado em circulação.

Nesse caso, a publicação de um vídeo que utilize de determinada imagem de arquivo, sem que o produtor detenha os direitos autorais, por exemplo, passa a não ser responsabilidade apenas de quem disponibilizou aquela produção, mas também da plataforma que a recebeu. O artigo 13 suscitou no Brasil algumas discussões por parte de produtores de conteúdo em torno de como essa ação impacta diretamente a produção de conteúdo, além de revelar um desconhecimento acerca do funcionamento das próprias plataformas. O caso talvez mais citado sobre esse assunto seja do youtube.

Lançada em 2005, a plataforma de compartilhamento de vídeos vinculada ao Google tem despertado ao redor mundo uma crise no formato tradicional de produção de conteúdos audiovisuais, responsável inclusive pela quebra em determinados monopólios da televisão (GREENE; BURGUESS, 2009). Possibilitando produções rápidas, sem necessidade de submissão a modelos e/ou formatos pré-estabelecidos e a grandes corporações, o Youtube tornou-se um espaço de produção e publicação de conteúdos digitais nunca visto até então. Com o crescimento da plataforma observasse uma série de novas figuras e/ou webcelebridades (MARTINO, 2014), conhecidas como produtores de conteúdo, influenciadores digitais ou, mais popularmente youtubers. A ascensão de tais figuras, e seu peso na balança midiática, tem impactado de tal maneira o campo que instituições de ensino superior, como a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, já oferece cursos de extensão focados na formação de influenciadores digitais.

Um dos principais obstáculos do youtube é o modo de lidar com a violação aos direitos autorais. Múltiplas técnicas foram tentadas, assim como instrumentos de verificação de conteúdos criados para tentar filtrar e controlar essa situação. Desde 2007 a plataforma trabalha em um mecanismo chamado Content ID, através do qual é possível que os detentores dos direitos autorais de conteúdos utilizados em produções de terceiros reivindiquem os direitos caso se sintam lesados e/ou possuam interesse. Tal reivindicação pode ter distintos impactos nos canais, desde a censura de trechos específicos, até a retirada da remuneração por vídeo (conhecido por Adsense), ou mesmo a exclusão na integra de todo o vídeo da plataforma. O acúmulo de 4 notificações, conhecidas como strikes, leva ao youtube deletar o canal da plataforma.

Nos últimos anos, além de um fenômeno midiático ao redor do mundo, o Youtube foi transformado em um grande repositório digital de fontes sonoras e audiovisuais (GREENE; BURGUESS, 2009). Arquivos ao redor do mundo passaram a ser disponibilizados na rede, assim como materiais autorais de produtores iniciantes e/ou de relativamente pequeno porte, possibilitando aos pesquisadores de diversas áreas do conhecimento acesso a produções não só de diferentes regiões do globo, mas também de várias temporalidades. Vídeos da Segunda Guerra Mundial, fotografias da Belle Époque no Brasil, entrevistas com artistas, montagens teatrais e performances ao vivo são apenas algumas das incontáveis possibilidades. Esse material tem servido não apenas para pesquisa de historiadores em documentações inacessíveis por motivos afins (deslocamentos, suportes, condições do material), mas também como recurso didático permitindo ao(a) professor(a) de diversas áreas utilizar da plataforma como recurso didático. Não à toa em 2014, a Google lançou o Google Classroom que reforçou a pretensão e utilidade de plataformas da empresa para a educação, sendo estas integradas as demais criações da empresa como o próprio youtube.

Contudo, a grande maioria destes materiais disponibilizados não são de cunho autoral, ou seja, são produções de terceiros que geralmente não detêm os direitos de propriedade sob aquilo que estão publicando. Não possuir os direitos dos arquivos publicados é o que tem despertado discussões em torno dos direitos autorais e que motivou a formulação das Diretrizes da União Europeia, partindo principalmente do interesse das grandes empresas e gravadoras. Em muitos países, como o Brasil, o entendimento sobre os direitos autorais vai além apenas da propriedade intelectual. Segundo Malm (2008), nestas localidades além do copyright, entende-se que utilizar um material sem atribuir os devidos créditos ou lucrar com produções de terceiros mesmo com tal atribuição fere também a imagem da pessoa, entrando no território dos danos morais. Nesse caso, além de um entendimento comercial, existe uma discussão em torno de uma imagem pública e pessoal do artista em relação a sua obra.

Mas o que isso tudo tem haver com os historiadores/as? Como citado, grande parte do youtube hoje é um repositório gigantesco de fontes. Existem, inclusive, historiadores/as digitais e/ou do tempo presente que trabalham apenas com fontes que são exclusivamente produzidas para a plataforma. Tais pesquisadores/as estão no olho desse furacão, inclusive de suas pesquisas pois, em resposta a estas diretrizes que alteram o modo de reinvindicação dos direitos autorais na Europa, muitas plataformas como o próprio youtube tem ameaçado retirar seus serviços destes país. O motivo principal? Não seria a diretriz em si, mas o que ela estaria alterando na cobrança dos direitos autorais.

O já mencionado Content ID é, atualmente, o meio empregado pela plataforma da Google para tentar contornar esta situação. Ou seja, existe uma política de delegar as próprias empresas reivindicarem os direitos sob o material e isso é feito diretamente na plataforma que abre um canal de comunicação entre o quem reivindica e aquele que disponibilizou o material. Dentro deste sistema o youtube funciona como um mediador, ao abrir o canal de negociação, responsável apenas por atender as demandas quando necessário e fazer valer suas regras, retirando o Adsense, se for o caso. Mas na área jurídica, legalmente a plataforma se exime de intervir. Por isso, caso o processo venha a ser levado a justiça, ela não se envolveria.

Contudo, a mudança na legislação a partir das diretrizes inverte essa lógica colocando as empresas digitais como responsáveis pelo material que é disponibilizado em sua plataforma. Nesse sentido, caso alguém disponibilize uma canção de um artista X sem que tenha esses direitos e a gravadora ou o próprio artista reivindicar a propriedade sob aquele material, seria o próprio youtube responsável por responder judicialmente. A implicação prática disso seria que os meios digitais que trabalham desta maneira, e nesse caso entram outros suportes como o vimeo, souncloud, e o próprio spotify, teriam que criar instrumentos de verificação que analisassem todas as publicações antes que fossem disponibilizadas.

Segundo as plataformas e empresas esse desenvolvimento de tecnologia seria impossível no atual contexto, tendo em vista o volume e os modos de armazenamento dos materiais, além de existir certa dificuldade deste trabalho pois seria preciso existir um grande acervo mundial dos materiais, ou seja, uma base de dados das próprias produções para conseguir mapear usos indevidos na rede. Existe, obviamente, também um interesse comercial por trás desta discussão, ou talvez, em outras palavras, uma falta de interesse. Não interessa aqui realizar uma discussão ou criar uma forma de defesa das diretrizes ou das empresas e/ou produtores de conteúdo, nem mesmo se pretende defender a disponibilização de materiais não autorais com ou sem fins lucrativos!

O foco aqui é chamar a atenção para a necessidade de nós historiadores/as, e pesquisadores/as na área de humanidades e artes, prestarmos atenção e discutirmos esse processo. Caso seja implementado, como tem sido discutido, grande parte de um acervo de proporções imensuráveis será retirado dos meios digitais na União Europeia impactando as pesquisas na área, sendo apenas uma questão de tempo até que as mesmas empresas que defenderam tais políticas no bloco econômico passem a pressionar outros grupos ao redor do mundo para a replicar esse posicionamento. Com isso não apenas estes acervos ficam em situação de suspense, mas a própria possibilidade de disponibilização de produções de pesquisas e/ou narrativas na área de história pública pois, mesmo que se atribua os créditos ao final e/ou se abra mão dos lucros, as plataformas possivelmente não aceitariam este material em um esforço de não correr riscos. Isso inclusive pode atingir citações a textos literários e/ou produções acadêmicas feitas em palestras pois, para uma plataforma a voz nesse caso não importaria, mas sim o conteúdo narrado.

Essa é uma discussão longa e esse texto não pretende esgotá-la. Também não seria possível fazer uma análise exaustiva sobre o material, as bases de argumento de cada lado envolvido ou o próprio conteúdo do texto. O que interessou nesse ensaio foi instigar e provocar uma reflexão, abrindo talvez debate maior. Em tempos da expansão do campo da história pública no Brasil, talvez seja hora de intensificarmos as discussões não só sobre acervos, disponibilização e ética, mas também sobre direitos autorais e/ou propriedade. Esse caminho talvez auxilie a nos prepararmos e proteger de situações além de uma possível cópia do Artigo 13.

 

 

 


REFERÊNCIAS

GREENE, Joshua; BURGUESS, Jean. Youtube e a revolução digital. São Paulo: Aleph, 2009.

MARTINO, Luís Mauro Sá. Teoria das Mídias Digitais. Petrópolis: Vozes, 2014.

MALM, Krister. A expansão dos direitos de propriedade intelectual e a música – uma área de tensão. ARAÚJO, Samuel, PAZ, Gaspar; CAMBRIA, Vincenzo. Música em Debate: perspectivas interdisciplinares. Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2008.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Igor Lemos Moreira

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina, na linha de pesquisa Linguagens e Identificações, é graduado em História (Licenciatura) pela mesma instituição. Bolsista CAPES-DS e integrante do Laboratório de Imagem e Som (LIS/UDESC). Associado a ANPUH-SC e a IASPM-AL. Tem experiência na área de História, com ênfase em História das Américas, História Contemporânea e Teoria da História. Atua principalmente nos seguintes temas: História das Américas, História do Brasil, História e Mídia, Internet e Cibercultura, História da Arte, Música Pop, Audiovisual e Canção, História Pública e História do Tempo Presente.

Fonte: Por que os/as historiadores/as devem discutir o Artigo 13?

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