Recensão crítica ao livroMichel Desmurget – Ponham-nos a Ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais. Contraponto, 2024
O livro Ponham-nos a Ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais, da autoria de Michel Desmurget (1965), doutorado em Neurociências e diretor de investigação no Instituto Nacional de Saúde e Investigação Médica francês (INSERM), foi editado em junho de 2024 pela Contraponto e é uma ode à leitura e ao prazer dos hábitos de leitura nas crianças e jovens em prol do desenvolvimento intelectual, emocional e social.
O livro, cuja edição francesa remonta a 2023, com o título Faites-les Lire! – Pour en finir avec le crétin digital, tem na primeira edição portuguesa o prefácio de Regina Duarte – Comissária do Plano Nacional de Leitura 2027.
Como antídoto ao declínio dos hábitos de leitura evidentes na atual sociedade, Desmurget enquanto especialista na área das neurociências e do desenvolvimento cognitivo infantil e juvenil, aborda através de diversos exemplos, dados estatísticos e representações gráficas, como, os:
“livros nos tornam melhores, pela capacidade de cultivar a mente, fecundar a imaginação, reparar a psique, acabar com a solidão, derrubar o obscurantismo, desenvolver a linguagem, salvaguardar as memórias colectivas e assim por diante” (Desmurget, 2024, 20).
Ponham-nos a Ler! é assumidamente uma resposta aos comentários negativos surgidos a outro livro do neurocientista francês, A fábrica de cretinos digitais. Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos – Prémio Femina de Ensaio em França, editado pela Contraponto, em 2021.
Neste livro de 2021, Desmurget aborda de forma brilhante a diminuição dos hábitos de leitura e a regressão das novas gerações, em termos cognitivos e aonível das capacidades intelectuais face à utilização recreativa do digital e à exposição excessiva dos ecrãs. Como reconhece – “O tempo que as novas gerações passam a interagir com smartphones, tablets, computadores e televisão é elevadíssimo” (Desmurget, 2021).
O cenário traçado é, obviamente, negativo, mas realista, comprovando que o QI das novas gerações é inferior ao dos pais. Os corroborados reflexos negativos sobressaem, também, em termos de saúde (como, por exemplo, através da obesidade, distúrbios no sono, desenvolvimento de doenças cardiovasculares, diminuição da esperança de vida, entre outros), ao nível do comportamento (como, a agressividade, depressão e a ansiedade), ao níveldas capacidades intelectuais (linguagem, concentração e memória) e, por último, em termos do rendimento escolar. A fábrica de cretinos digitais desvendou de forma verídica, como a massificação da indústria do entretenimento digital gerou diversas campanhas publicitárias ilusórias dos seus produtos nos cérebros dos seres humanos, em específico, na infância e na adolescência.
É, no seguimento desta ilusão e aos comentários negativos emergidos, que Desmurget escreve Ponham-nos a Ler!, em 2024. É uma ode, um elogio à leitura e ao prazer de ler, numa época de comprovado declínio dos hábitos de leitura nas novas gerações. Podemos mesmo falar, de uma catástrofe para a fecundidade coletiva da geração escolar. Como sublinha Regina Duarte no prefácio e citando Desmurget, pretende-se que a leitura seja uma missão nacional, com benefícios que “torna as nossas crianças mais inteligentes, mais cultas, mais criativas, mais capazes de comunicar, de estruturar os seus pensamentos e de organizar as suas afirmações” (Desmurget, 2024, 14).
Ponham-nos a Ler! é constituído por cinco partes, para além de um prólogo, intitulado,“Ler por prazer” (Desmurget, 2024, 17) e um epílogo,“Fazer da criança um leitor” (Desmurget, 2024, 341), onde é abordado diversas formas de criar hábitos de leitura nas crianças e, sobretudo, desde a infância.
A primeira parte, “A lenta agonia da leitura” (Desmurget, 2024, 29) ilustra o declínio do livro nas novas gerações e as suas consequências no rendimento escolar e no desenvolvimento, com exemplos, de 80% de leitores eficazes e de outros contos de fadas e de 10% de verdadeiros leitores e outros factos preocupantes, abordando ainda, dados do PISA – Programme for International Student Assessment ou a incarnação do desastre, assim como, os leitores cada vez menos competentes.
Como sabemos, o PISA, desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) em 2000, visa avaliar se os alunos de 15 anos (idade que corresponde ao final da escolaridade obrigatória, em muitos dos países participantes) estão preparados para enfrentarem os desafios da vida quotidiana, em termos da literacia matemática, literacia científica e literacia de leitura. Como constatámos, em 2022, os resultados do PISA ficaram aquém dos delineados a nível nacional. Portugal participou com 224 escolas, 6793 alunos e 3487 professores de todas as regiões do país e os seus desempenhos médios globais desceram de forma consistente, apresentando pontuações médias na média da OCDE, sendo que o seu trajecto descendente acompanha a tendência internacional. Citando o Relatório nacional PISA 2022:
“os alunos portugueses obtiveram 477 pontos a literacia de leitura, um ponto acima da média da OCDE (476 pontos), o que corresponde a uma descida de 15 pontos significativos em relação a 2018, de 13 pontos significativos relativamente a 2009 e a um aumento de seis pontos não significativos face ao primeiro ciclo do PISA (2000), anos em que a leitura foi o domínio principal” (PISA, 2022, viii).
A segunda parte do livro,“A arte da leitura” (Desmurget, 2024, 93) evidencia que a leitura é uma competência complexa, desenvolvida lentamente e voltada para a compreensão. Como o Desmurget elucida, o “nosso cérebro foi feito para a aprender” (Desmurget, 2024, 111), por isso, é necessário descodificar para começar e ler para compreender.
A terceira parte, “As raízes da leitura” (Desmurget, 2024, 173) descreve a importância das experiências precoces para a construção da competência leitora no seio familiar e da incapacidade das escolas colmatarem as falhas de um ambiente pouco estimulante. Como frisa Desmurget, a leitura partilhada promove a leitura individual e deve-se preparar o cérebro, para compreender os mundos escritos, brincar com as letras e os sons e construir alicerces verbais (falar e ler histórias), sendo que as escolas não conseguem compensar as deficiências das raízes da leitura.
A quarta parte,“Um mundo sem livros” (Desmurget, 2024, 233) salienta a aptidão dos livros para estruturarem o pensamento, alimentar a memória e promover o conhecimento. Aqui é vincado o “potencial único do livro” (Desmurget, 2024, 244). O livro continua a ser melhor do que a internet, a palavra escrita continua a ser melhor a palavra falada e o papel continua a ser melhor do que o ecrã.
A quinta parte e última, “Benefícios múltiplos e duradouros” (Desmurget, 2024, 269) exemplifica os benefícios cientificamente comprovados e documentados da leitura no desenvolvimento intelectual, emocional e social das crianças e jovens, com impacto no rendimento escolar. É imperativo construir o pensamento (aumentar a inteligência, enriquecer a linguagem, estimular a criatividade), desenvolver as aptidões emocionais e sociais e construir o futuro, sabendo que a leitura não é hereditária. É com o tempo passado a ler que se constrói leitores e é um poderoso remédio contra o insucesso escolar.
Em suma, no livro Ponham-nos a Ler!, “o leitor é uma antítese do cretino digital” (Desmurget, 2024, 26). É uma ode à leitura e à promoção dos benefícios do prazer de ler. É um excelente livro sobre a literacia da leitura, com dados científicos comprovados por um especialista na área das neurociências infantil e juvenil.
Ponham-nos a Ler! é uma referência a destacar nesta atual fase de transição digital na educação, mas de declínio dos hábitos de leitura e com reflexos na tripla componente – intelectual, emocional e social das crianças e dos jovens. Esperamos que através da sua leitura, as mentalidades se tornem mais cientes e realistas dos danos causados pela constante e persistente utilização dos ecrãs, ressalte-se para fins recreativos e não educativos e, que o mesmo condicione a um mundo onde a promoção da leitura e o prazer de ler comece a imperar, mesmo que seja uma leitura em suporte digital.
Como tivemos oportunidade de verificar, para além dos resultados pouco animadores do PISA 2022 em Portugal, a leitura surge como a base principal que permite à criança desenvolver três pilares da sua essência humana, falamos das aptidões intelectuais, das competências emocionais e das habilidades sociais, com reflexos numa educação inclusiva e no rendimento escolar. Parafraseando Regina Duarte na sua tese de Doutoramento:
“Ler é também uma fonte de conhecimento que parece aumentar o próprio prazer que se tem na leitura, num processo que é auto-sustentado e dependente exclusivamente do livro e da sua capacidade de nos encantar.” (Duarte, 2012, 201).
Ana Margarida da Costa
Referências bibliográficas
Desmurget. M. (2021). A Fábrica de Cretinos Digitais. Os perigos dos ecrãs para os nossos filhos. Contraponto.
Desmurget, M. (2024). Ponham-nos a Ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais. Contraponto.ISBN: 978-989-666-444-2
Duarte, R. S. (2012). Ensino da literatura: nós e laços. [Tese de doutoramento em Educação na área de especialização de Literacias e Ensino do Português, da Universidade do Minho]. Repositório da Universidade do Minho https://hdl.handle.net/1822/25638
IAVE. (2022). PISA 2022 – PORTUGAL Relatório Nacional. https://iave.pt/wp-content/uploads/2019/08/Relatorio-Final.pdf
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