Sexta-feira, 8 de março de 2024, Pará de Minas.
Sou um fracasso.
Escrevo essa carta para o eu de 2014 e sim, fracassamos. Lembro que foi um ano conturbado, pós manifestações de 2013 e ano eleitoral. O Brasil caminhava para mais uma polarização entre tucanos e petistas. Naquele momento, quem poderia prever que seria a data de início da catástrofe fascista que assolaria o Brasil atual. Mas não era com isso que estávamos preocupados, não é mesmo? Acabávamos de entrar no oitavo ano, dito ser o ano mais difícil da fase escolar. E, de fato, foi. Não por conta das matérias em si, mas porque perdemos algo precioso ali. Perdemos completamente a nós, nossa essência e a dignidade para viver e olhar com confiança nos olhos de qualquer pessoa. Foi um período difícil, frustrante e vazio. Não passávamos de uma casca oca que deambulava pelos asfaltos esburacados o mais rapidamente possível. Formávamos um círculo de ouroboros. Estudar, trabalhar, dormir, acordar, estudar, trabalhar… Nos perdemos na rotina monótona e frívola da vida. Nada importava naquele momento, vivendo no modo automático enquanto experimentávamos o desprazer de viver. Um fracasso completo enquanto irmão mais velho, filho, neto, pessoa. Um corpo definhando em vida enquanto dizia “tudo vai bem”. É, não havia motivos para a nossa existência, afinal de contas nunca pedi para nascer. Somos jogados nessa realidade chamada mundo e obrigados a experienciar o que se denominou-se como vida. Nada fora das estimativas da minha geração.
No entanto, pouco tempo depois, algo veio a mudar. Sou de uma família simples, fruto de relacionamentos interraciais e da pobreza. Nunca passei fome e nunca faltou nada necessário em casa, mas também nunca tivemos nada em abundância. Comecei a trabalhar cedo, com meus 12 anos. Fazia frete junto ao meu tio para Belo Horizonte. Carregávamos de tudo, desde tambores pesados de tripas, até produtos de higiene para quartéis militares. E, assim, fui vivendo a minha adolescência. Porém, mesmo em falta de um “propósito” para a vida, eu sabia que não queria passar o restante dos meus dias morando dentro de uma van. Não, não estou desprezando ou diminuindo o trabalho do meu tio, muito pelo contrário. Sinto saudades dos tempos dourados em que voltávamos para casa depois de uma árdua jornada de trabalho, vendo o sol se por ao som de Sorriso Maroto, Alcione, Péricles, Bom Gosto e diversos outros grupos e cantores de samba e pagode. Também vi nele a primeira figura paterna que tive presente na minha vida e acredito que, se não fosse pelos fretes, talvez poderia ter enfrentado o mesmo destino de muitos colegas de escola – tráfico de drogas, prostituição, paternidade juvenil ou até ser morto pela polícia. Mais importante que isso, encontrei, por meio dessa experiência o que eu não queria ser.
A partir de então, tive uma meta traçada na minha mente: quero entrar numa universidade pública, ser o primeiro mestre e doutor da minha família e dar aulas no ensino superior. Entendi – instintivamente – que a única maneira para mudar meu futuro era através da educação. Foi com essa motivação que passei por muitas adversidades ao longo desses 10 anos. Conseguimos, em 2015, uma carta de recomendação da diretoria da escola municipal que estudava e, através dela, ingressei como bolsista integral no colégio particular mais renomado da cidade. Foram três anos de muita angústia, tristeza e dor. Senti como a falta de um capital cultural faz toda a diferença na vida de um estudante, passei por várias recuperações e me decepcionei muito com a minha não capacidade inicial de acompanhar o ritmo e dinâmica da minha sala. Apesar dos pesares e da minha falta de autoconfiança, consegui em um ano atingir o nível da turma. Passei o meu terceiro ano fazendo aula em tempo integral, alternando entre disciplinas, provas e simulados. Às quartas, saia de casa seis horas da manhã e voltava onze da noite (uma vez que também inventamos de fazer um curso pré-vestibular popular no meio do terceiro ano. Passei em primeiro lugar no curso de psicologia da minha cidade na época, com 95 de aprovação e fui um dos poucos a conseguir ingressar direto numa universidade pública em 2018. Foi o primeiro relance de que o caminho que escolhemos estava dando algum fruto.
Nos 4 anos subsequentes, estudei muito para conseguir bons resultados na faculdade. Participei de simpósios, rodas abertas, debates, manifestações, apresentação de minicursos, monitoria, grupos de pesquisa e extensão e ajudamos, até mesmo, em criar o primeiro grupo de pesquisa sobre história da Ásia da Universidade. Também tive outras conquistas na vida pessoal, como tirar a carteira de motorista, trabalhar como jovem aprendiz e, posteriormente, numa escola de línguas estrangeiras para aprender o básico do inglês para a prova de proficiência em língua inglesa. Contudo, nunca consegui celebrar direito esses fatos. Desenvolvi ansiedade e agravei a depressão com a pandemia, além de lidar com a síndrome de impostor constantemente. Desacreditei do meu trabalho de conclusão de curso até o último momento e, devido a piora da saúde mental, não fui capaz de realizar a seleção de mestrado imediatamente quando formei. Me frustrei, mas continuei tentando.
No meio de 2023, entrei em contanto com a minha professora e, juntos, construímos um projeto de mestrado que, apesar de muito pouco ortodoxo, acreditávamos ter o seu valor, uma vez que sou um pesquisador sobre o suicídio. Passei por todas as etapas da seleção do mestrado, sempre com a expectativa de que não iria conseguir passar. Viajei sozinho pela primeira vez para Mariana para realizar as provas, fiquei rígido como um robô na entrevista e desesperançoso na análise de currículo. Entretanto, passei. Sim, em novembro de 2023, passamos no tão sonhado mestrado. Na época, não consegui comemorar devido ao meu pessimismo e receio de não conseguir nenhuma bolsa de estudos. Mesmo com essas emoções conflitantes, torci pelo melhor e fiz todo o necessário para a minha mudança para Ouro Preto. Consegui uma kitnet, peguei móveis emprestados dos meus tios e com todo o receio do mundo, comprei aqui e ali materiais para a casa. Não vou mentir, a essa altura, já devidamente matriculado, senti que as coisas poderiam dar certo. Mas não deram, pelo menos não da forma como gostaria. Não consegui a bolsa.
Fiquei extremamente frustrado e desanimado. O sonho de uma vida tinha se esvaído das minhas mãos. Moro a centenas de quilômetros de distância da UFOP, não tenho conhecidos na cidade e precisei firmar acordos mesmo não tendo garantias de que poderia cumpri-los. Fui ao fundo do poço. Não acreditei que levaria um não no momento mais crucial. Fiquei indignado com a seleção de bolsas e comigo. Depois de todo o esforço e sacrifício de 10 anos, no último momento, tive o tapete puxado. Me senti um fracasso, impostor e inútil. Coloquei minha mente em modo automático para lidar com os problemas cotidianos, mas estava devastado. Felizmente, um dia depois, tive uma sessão de terapia e, através dela, consegui enxergar minha trajetória com outros olhos. Pessoas que são transpassadas por tantas interseccionalidades geralmente tem muito poucas oportunidades na vida, então agarrei a todas e fiz o meu melhor, apesar dos momentos de constrangimentos e humilhações. Questionei se o mestrado era realmente algo que eu queria fazer. Mas entendi que não é o fim do mundo (ainda). Em meio a tantas expectativas e frustrações, perdi de vista a motivação que me fez chegar até onde cheguei, os sacrifícios e penúrias que passei e a promessa que fiz ao meu eu de 2014.
Cursar o mestrado é uma das principais coisas que me fornecem desejos de vida em meio a tanto adoecimento mental. Sim, eu não consegui bolsa, estou frustrado e com receio da ter decepcionado pessoas importantes para mim, principalmente, minha professora. Também não sei como vou lidar financeiramente com esses gastos, mas decidi me arriscar em ir. Vai dar certo? Sinceramente, não faço ideia. Talvez ainda haja esperança de bolsa e eu esteja sendo alarmista e dramático como sempre? A última parte é mais provável. No entanto, pela primeira vez em muito tempo, estou em paz. Conversando com a psicóloga, entendi que posso ter orgulho de mim e da minha história. Ou melhor, eu devo ter orgulho. Há mais ou menos um ano, escrevi um texto num blog que criei sobre um anime chamado “Summertime Render”. Na época, aquela obra me fascinou de um jeito que não sei explicar. E, depois de tanta reflexão, entendi que o anime, no final das contas, é sobre recomeços e falhas. Falhar é frustrante e ainda não sei como lidar com essa emoção. Recomeços são difíceis, mas sempre ocorrem, uma vez que a vida é feita de ciclos. Apesar de todas as inseguranças, medos e receios, tudo que fiz ao longo desses 10 anos não foram em vão. É impossível controlar o incontrolável e a vida é isso no fim das contas: incontrolável. Mesmo diante da frustração, estou aprendendo a seguir em frente. E essa é a maior conquista que adquirimos até aqui: a possiblidade de poder fracassar, recomeçar e se orgulhar. Espero que daqui há 10 anos possa cumprir nossa promessa e desejo. Só, tentemos novamente!
Com carinho,
Thiago.
“[…]Se alguém por mim perguntar
Diga que só vou voltar
Depois que me encontrar” (Cartola)
SOBRE A AUTOR