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Vinte e sete de setembro, eu sempre me lembro

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Como diz o samba “falange do erê” dos compositores Arlindo Cruz, Jorge Carioca e Aluísio Machado, no dia vinte e sete de setembro eu sempre me lembro e não esqueço de dar: cocada, paçoca, suspiro, pipoca, bolo, bala, bola, cuscuz e manjar! Cresci admirando essa magia, correndo atrás de doces e aguardando, ansioso, o mês de setembro, que sempre me trouxe muita alegria. Hoje retribuo toda essa felicidade, ofertando, neste dia, doces, bolos e guaranás em homenagem e gratidão aos santos meninos.

Tudo começa com uma ida ao Mercadão de Madureira, um grande centro de vendas de produtos religiosos afro-brasileiros, senão o maior. Onde também tem várias lojas de doces. É lá que compramos os doces que serão postos nos saquinhos e distribuídos no dia de São Cosme e São Damião. Doces comprados, o próximo passo é ensacá-los, o que já é um ritual onde toda família se une para cada um botar uma qualidade de doce no saco, numa feliz confraternização.

Marcamos de ensacar os doces num domingo de manhã. Fui acordado, logo cedo, por um menino que pulava em minha cama e puxava meu lençol, a gritar, numa euforia danada: – “Vem, tiozinho, vem ser criança comigo!”. Acordei no susto, ainda com sono, sem entender que menino era aquele e como ele tinha ido parar ali. Ele devia ter uns cinco anos, talvez. Estava de camisa azul claro e bermuda branca.

Ainda estou sonhando, pensei. Fechei os olhos de modo a continuar a dormir. Ansioso, o menino que não parava de pular e bater palmas gritou novamente, dessa vez ao pé do meu ouvido: – “Tiozinho, vamos! Meus irmãozinhos estão te esperando pra ir com a gente!”. Olhei, agora um tanto assustado, para a porta do quarto e lá estavam eles. Não precisaram se apresentar, eu já os conhecia desde criança. Ao vê-los senti imediatamente o doce gosto da infância. Eram eles sim. São Cosme e São Damião. E o menino que me acordou, Doum.

“Vamos, tiozinho!”. Doum nesse momento me puxava pela mão e encantado por aquela atmosfera festiva fui com ele. Assim que nossas mãos se tocaram percebi que eu havia me tornado criança novamente. Os três me abraçaram alegremente. Já havia chegado o dia vinte e sete de setembro. Juntos fomos correr atrás dos doces que os devotos distribuem em forma de gratidão pelas graças recebidas e por toda proteção dada às suas crianças.

De repente, eu estava na casa da minha avó. E meus primos também estavam lá. Todos eles crianças, novamente. Concentrados para sairmos à caça dos sagrados e desejados saquinhos de doces. Havíamos voltado no tempo? O que estava acontecendo? Bom. Não era hora para questionamentos adultos e sim de aproveitar aquele momento que havia ficado no passado e sem saber como explicar, estávamos revivendo.

Aula? Que nada! Dia vinte e sete de setembro não era dia de aula. Patota reunida na casa da avó, estoque de sacolas plásticas, dessas de supermercado, no bolso – para guardar os saquinhos – e lá vamos nós! Quem terá a sorte de pegar mais doce? Uma saudável disputa se iniciava. “Moça me dá um doce!”. As crianças corriam a todo momento pelas ruas com essa frase na ponta da língua. Qualquer senhora com uma sacola com tamanho um pouco acima do normal, carro passando devagar ou qualquer casa onde duas ou mais pessoas conversassem no portão era alvo da correria das crianças, que rapidamente se dirigiam ao local, ou ao carro, ou à pessoa com a tal sacola avantajada, para então entoar o mantra do dia: – “moça me dá um doce! ”.

Assim íamos. Entrando numa rua, saindo em outra, rodando o bairro inteiro e por vezes bairros vizinhos. Neste dia, a alegria tomava conta das ruas do subúrbio do Rio de Janeiro, principalmente. Locutores de rádio chamavam a atenção dos motoristas para dirigirem com mais cautela por causa das eufóricas crianças correndo pelo meio da rua com bala na mão. Era festa na rua e no coração. Procissão de crianças. Ciranda entoada em forma de oração.

Uma grande parte destes festejos ficava e, ainda fica, por conta dos diversos terreiros de Umbanda e Candomblé que fazem festas em louvor a Cosme e Damião e a toda sua luminosa e alegre falange. Os gêmeos africanos Ibeji são sincretizados com os gêmeos, Cosme e Damião, mártires do cristianismo. Dessa mistura sincrética nasceu essa bonita festa que ocorre no dia vinte e sete de setembro. São os santos católicos no terreiro, os Orixás na Igreja e os moleques na rua.

Pracinhas iluminadas e adoçadas pelas oferendas aos santos meninos. Terreiros de portas abertas, bolo na mesa, manjar de cores variadas, guaraná, bolas, bonecas, doces, caruru, crianças eufóricas, preto-velho tomando conta e rezando a garotada. Uma senhora que, de repente, começou a pular e falar com voz infantil, assustou um menino de uns três anos que começou a chorar. A senhora, pulando muito, roubou a chupeta do moleque e saiu correndo pra debaixo da mesa do bolo, deixando o menino ainda mais assustado. Era ele um dos sete meninos que iria ficar em volta da mesa de doces, como manda o ritual. Tiveram que arrumar outro. Os sons dos atabaques começavam a ecoar quando pegamos nossos doces e fomos em busca de outros mais.

Numa casa já bem próxima à casa da vó – ponto de partida e também de chegada – uma fila se formava. “Nessa casa só dá doce bom. E tem também um bolo delicioso. Parece que a dona faz bolo pra fora. É uma bolera de mão cheia. Vale a pena ficar nessa fila”. Disse a mãe de uma das crianças, mais empolgada que o próprio filho, deixando a criança de outrora, que mora no seu coração, aproveitar a festa também. Mesmo um tanto cansados, pois já chegava o fim do dia, ficamos. Tradicionalmente pegávamos o último doce na casa dessa bolera.

A tarde ia caindo, a noite ia chegando e nós íamos voltando para a casa da vó para contabilizar os saquinhos de doces. Foi quando fui acordado pela minha mãe: – “Vamos ensacar os doces! Chega de dormir! Estamos te esperando! ”. Acordei com um leve sorriso no rosto. Sim, eu estava sonhando. E que sonho bom! Juntos nós fomos ensacar os doces com amor, fé e gratidão no coração.

 

Viva São Cosme e São Damião!

 

 

 


Créditos na imagem: Danielle Ramalho, @danidara8.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Tadeu Goes

Carioca, poeta, autor do livro de poesia Nascente (2018), estudante de Direito, formado em História pela Universidade Estácio de Sá, com especialização em História Antiga e Medieval pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro.

Fonte: Vinte e sete de setembro, eu sempre me lembro

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