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Da terra, a vida: Artistas indígenas do Brasil

Publicado em: Da terra, a vida: Artistas indígenas do Brasil

Há algum tempo acompanho com frequência a cena artística contemporânea brasileira, porque considero uma ótima oportunidade para ver como se movimentam as fronteiras do mundo da arte: questionar, ressignificar, emergir. Em 2022, o panorama sociopolítico, embora extremamente conflituoso, abriu as portas para vozes que há tanto lutam para garantir o seu espaço. É interessante notar como há apenas cerca de dois ou três anos atrás, o número de artistas indígenas indicados a grandes premiações como o Prêmio Pipa não excedia cinco, num cálculo otimista. A lista dos indicados deste ano conta com um número maior, o que me relembrou algumas questões importantes com as quais me deparei ao longo da escrita de projetos e pesquisas.

A passos lentos, a sociedade brasileira começa a entender a brutalidade e injustiças ocorridas em áreas que deveriam ter sua salvaguarda respeitada. Em meio aos olhos que se voltam às cenas de destruição, vozes potentes se reafirmam. A representatividade indígena é de fundamental importância inclusive para romper com cânones que insistimos em carregar até hoje. A começar pela divisão arte x artesanato. Particularmente, esta é uma divisão que me causa incômodo sobretudo sob o ponto de vista da interpretação da arte não-europeia. Isto porque a arte indígena possui símbolos, atributos, técnicas e intenções distintas e ainda pouco exploradas pela História da Arte.

No caso do Brasil, esta discussão está bem exemplificada no Livro de Ouro do Centennário da Independência, catálogo publicado em 1922 em função da realização da Exposição Universal do Centenário da Independência. Pensado para servir tal como uma “vitrine” do Brasil, tanto o evento como o catálogo buscaram apresentar o que havia de mais moderno no País até então, nas mais diversas áreas de produção. O livro dedica apenas seis páginas às Artes Plásticas, porém, revela objetivamente o pensamento elitista acerca da produção artística nacional, por meio de um discurso institucionalizado. Dividem-se em três grandes períodos a História da Arte no Brasil: de 1500 a meados do século XVIII, com a arte dos povos originários e peças artísticas menores ou domésticas; o período que compreende a emergência da arquitetura e outras linguagens artísticas aos moldes europeus e que dura até o início do século XIX; e, por fim, o então periodo da arte contemporânea, em que se considerava que, com a chegada dos conceitos e métodos acadêmicos, a arte brasileira havia finalmente atingido sua forma mais representativa. Para este texto, gostaria de comentar o chamado primeiro período e como os autores do texto o descrevem: o discurso, cuja intenção é diminuir a arte indígena sob a motivação de que nela não se encontrava nenhuma qualidade tal como estabelecidas no academicismo europeu, revela, entretanto, uma série de contradições causadas justamente pelo engessamento da visão artística. Ao mesmo tempo em que são elogiadas as pinturas e adornos em objetos diversos, a repressão vem no sentido de que não se trata de uma arte pautada em um saber acadêmico. O misto de admiração e desprezo aparece em todo o trecho dedicado à arte indígena – um aspecto interessante é o fato de que, por reiteradas vezes, os autores reforçam que “não há nada relevante a se dizer sobre este período”, mas terminam por dedicar o dobro de páginas a ele, frente aos outros períodos.

Esta resistência à arte fora dos padrões impostos pela cultura branca persiste. Para entender a arte indígena, é preciso imgergir em universos diferentes, essências ancestrais com as quais raramente fomos colocados em contato, sob concepções também singulares em suas relações com a memória, identidade e a contemporaneidade. A seguir, apresento algumas artistas vindas de povos originários do Brasil:

Arissana Pataxó, nascida em Porto Seguro em 1983, desenvolve obras e pesquisas acerca da temática indígena como parte do mundo contemporâneo, além de uma série de materiais didáticos voltados para a comunidade Pataxó. A artista trabalha com frequência utilizando-se da acrílica sobre tela, e representa homens, mulheres e crianças Pataxó em cores vibrantes, que passam sensações únicas para cada instante representado. Arissana também trata de questões acerca das violências sofridas pela comunidade, como na obra Mikay (2009). Arissana já foi premiada diversas vezes por seus trabalhos e realizou um número considerável de exposições na Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Distrito Federal.

Juliana Alves Xucuru é pertencente ao povo Xukuru de Cimbres de Pesqueira, em Pernambuco. Memória, identidade e o ser mulher indígena são os fios condutores da poética de seus trabalhos. Juliana se utiliza de linguagens variadas, como pintura, desenho, colagem e instalações. A colonialidade também é um ponto bastante trabalhado pela artista, sobretudo frente à figura feminina indígena. Arissana e Juliana têm formações a nível acadêmico, e se utilizam da mesma para potencializar seus trabalhos no sentido de rupturas com relação a conceitos e preconceitos ainda presentes na sociedade contemporânea a respeito dos povos indígenas, além de promover a formação educacional de novas gerações levando-se em conta as suas realidades.

Outra artista que também se dedica às questões relacionadas às memórias e histórias passadas entre mulheres é Tamikuã Txihi, indicada ao Prêmio Pipa deste ano de 2022. Tamikuã entende a arte como um meio de promover a proteção física e espiritual dos corpos, territórios e conhecimentos dos povos originários. Transitando por entre várias linguagens artísticas, Tamikuã se destaca ainda pelas intervenções urbanas, como Guardiã da Memória, pintura realizada na empena do Museu das Culturas Indígenas em São Paulo e os muralismos Imakã Ug Kuhukê (Mãe e filha, abrigo para os sonhos em tempos difíceis) e Alegria da Mãe Água.

Por fim, outra artista indicada ao Pipa deste ano é Glicéria Tupinambá, nascida em Buerarema (BA) em 1982. Também conhecida pelo nome Célia Tupinambá, também é participante ativa das questões políticas e religiosas do povo Tupinambá, com ênfase nas questões ligadas à educação, organização produtiva da aldeia, serviços sociais e aos direitos das mulheres. Na série de fotografias Assojaba Tupinambá, por exemplo, Glicéria integra-se ao ambiente que a rodeia, envolvida no manto formado por  penas de pássaros variados, como aves domésticas a silvestres e malha de cordão encerado com cera de abelha jitaí e tiúba. Os mantos Tupinambá estão presentes também nas performances de dança de Glicéria. A memória e a identidade são traços em comum nas obras destas quatro artistas, assim como a presença da figura feminina ancestral e contemporânea. Como mencionamos anteriormente, as intenções e simbologias da arte indígena se diferenciam daquelas consideradas “tradicionais” na História da Arte, pois trazem em si significados únicos de cada comunidade, suas relações com a ancestralidade e o mundo contemporâneo. A entrada em cena dos olhares dos povos originários em círculos antes de difícil acesso representa, antes de tudo, um novo momento para a vivência artística nacional, e faz parte de um processo de reavaliação da História da Arte e seus instrumentos teóricos de interpretação, e ainda mais quando somada às representações de realidades femininas.

 

 

 


REFERÊNCIAS

Arissana Pataxó. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 15 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/pag/arissana-pataxo/

Glicéria Tupinambá. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 15 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/gliceria-tupinamba/

Juliana Alves Xucuru. In: Artistas Latinas. Acesso em 15 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.artistaslatinas.com.br/artistas-1/juliana-alves-xukuru

Tamikuã Txihi. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 15 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/tamikua-txihi/

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Assojaba Tupinambá. In: Glicéria Tupinambá. Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 15 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/gliceria-tupinamba/

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestranda em História pelo PPGHIS-UFOP. Possui ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, Antropologia Social, Curadoria e Patrimônio Cultural. É aluna do curso de Curadoria pelo CEFART/ Palácio das Artes em Belo Horizonte, além de atuar como artista visual independente. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social – JALS, sediado na UFOP. Fundadora do grupo autônomo Linguagens e Percursos Artísticos – GELP. ART.

Fonte: Da terra, a vida: Artistas indígenas do Brasil
Feed: HH Magazine
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