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É possível encontrar e descrever o Passado? Um par de ficções sobre o assunto

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Os filhos do capitão Grant

Publicado originalmente entre 1865 e 1867, e em forma de livro com três volumes em 1868, a obra de Jules Verne (1828-1905) Les enfants du capitaine Grant narra as aventuras de um navio novo, o yacht Duncan, e da sua tripulação. A 26 de julho de 1864, quando atravessava o Canal do Norte, um dos marinheiros viu um peixe estranho àquelas águas e que acabou sendo identificado como um tubarão. Os passageiros do navio decidiram caçá-lo, pois tal empresa deveria ser útil e, ao mesmo tempo, excitante.

Quando a tripulação já estava preparada para atirar os restos do animal de volta ao mar, um dos homens reparou num objeto estranho nas suas tripas. Um marinheiro opinou que deveria ser um pedaço de pedra; um outro, uma bala de canhão (achados nada interessantes); mas um terceiro identificou como sendo uma garrafa velha.

O dono do navio, lord Edward Glenarvan, ordenou que a mesma fosse retirada com cuidado, pois muitas vezes as garrafas achadas no mar encerram documentos preciosos. O assunto tornou-se um objeto de curiosidade, e os passageiros do navio passaram a agir como investigadores. Antes de ser observada interiormente, a garrafa foi examinada exteriormente. Em primeiro lugar identificaram a feitura da garrafa e descobriram que ela vinha de longe. Foi então que a abriram e, com efeito, havia dentro da garrafa alguns papéis, que foram denominados de documentos pelos descobridores, no pressuposto de que continha uma mensagem vinda de outro lugar, da parte de outrem (ou outras pessoas).

Havia três documentos na garrafa, escritos em três idiomas diferentes, inglês, francês e alemão, mas a água e o tempo tinham desbotado o escrito, de modo que se podia ler, em todos três, apenas poucas palavras ou fragmentos de palavras. O major Mac-Nabs, primo de lady Helena, esposa de Edward Glenarvan, avançou com a ideia de que talvez os documentos se completassem uns aos outros, ideia apoiada por John Mangles, capitão do Duncan, que considerava impossível que a água do mar tivesse comido as linhas exatamente nos mesmos sítios, pelo que reunindo esses pedaços de frases acabariam por lhes achar um sentido inteligível.

Edward Glenarvan concordou com as ideias do major e do capitão, mas considerou que se devia proceder com método. A mensagem do primeiro papel, em inglês, não fazia sentido. Depois de decifrarem os outros dois fragmentos de texto, escritos em alemão e francês, os investigadores combinaram-nos de modo a obter algumas chaves. Para Edward Glenarvan era preciso tomar em consideração três coisas bem distintas que se encontravam no documento: primeiro, as coisas que se sabem; segundo, as que se podem conjeturar; terceiro, as que não se sabem.

E acabaram por conseguir chegar à seguinte mensagem: um navio chamado Britannia, que zarpara a 7 de junho de 1862, de Glasgow, tinha naufragado em algum lugar. Tinham sido o capitão e os marinheiros a atirar a garrafa ao mar aos 37º 11’ de latitude Sul, em busca de socorro. Desconhecia-se tudo o mais, principalmente a longitude. Recorrendo a um outro documento, a Mercantile and Shipping Gazette, descobriram que o nome do capitão era Grant. Os passageiros do Duncan não ficaram apenas com isso e foram adiante, pois julgaram que poderiam completar as falhas das mensagens com facilidade para restaurar palavras e frases. Assim fazendo, concluíram que o Britannia tinha naufragado na costa da Patagónia e que o capitão e dois marinheiros haviam sido capturados pelos índios. Aparentemente tudo se concatenava e a mensagem parecia ter sido lida corretamente.

Para Edward Glenarvan, eles tinham conseguido saber tudo e os lugares em branco que o mar tinha deixado entre as palavras do documento ele iria preenchê-los sem dificuldade, como se escrevesse e o capitão Grant ditasse. Colocaram um anúncio no The Times e no Morning Chronicle declarando que tinham informações sobre o destino do Capitão Grant e, para eles, a história do Britannia estava encerrada.

Entretanto, a busca pela história não terminou neste estágio. O Capitão Grant tinha deixado descendentes, Mary e Robert, que ficaram pessoalmente interessados no destino do seu pai. Persuadiram os proprietários do Duncan a promover uma expedição para encontrar o Capitão Grant e foi assim que a curiosidade se combinou com o comprometimento. Já a caminho, descobriram que um passageiro, até então desconhecido de todos e que tinha subido a bordo do Duncan por engano, chamado Jacques Paganel, secretário da Sociedade de Geografia de Paris, membro correspondente das Sociedades de Berlim, de Bombaím, de Darmstadt, de Leipzig, de Londres, de Petersburgo, de Viena, de Nova Iorque, membro honorário do Instituto Real Geográfico e Etnográfico das Índias Orientais, tinha passado vinte anos a fazer geografia no seu gabinete e que se juntara à expedição porque quis entrar na ciência militante, a fim de verificar o seu conhecimento.

Jacques Paganel também era muito falado por causa das suas distrações como quando, por exemplo, tinha publicado uma célebre carta da América, na qual pusera o Japão, o que não impedia que fosse um sábio muito ilustre e um dos melhores geógrafos de França. A pedido seu, o famoso documento foi-lhe mostrado, tendo-o estudado com atenção demorada, minuciosamente, e nenhuma outra interpretação lhe pareceu possível.

Mas, ao chegarem à Patagónia, não encontraram o Capitão Grant e tomaram consciência de que aquilo que pensaram ser um facto não passava de uma interpretação da mensagem em termos de “Teoria da Patagónia”. Assim, e após uma intuição súbita, Jacques Paganel chegou à conclusão de que se tinham enganado sempre e que tinham estado à procura do Capitão Grant onde ele não se achava e onde nunca se tinha achado. Tinham errado nas suas pesquisas e tinham lido no documento o que ele não continha. Ainda segundo Jacques Paganel, se tivesse sido ele a achar o documento, se o seu juízo não tivesse sido falseado pela interpretação que a tripulação do Duncan tinha dado originalmente, ele, Paganel, nunca teria compreendido o documento de outro modo. O documento foi relido e concluiu-se que aquela teoria era falsa e que o Capitão Grant tinha de estar na Austrália. Ao ser elaborada a nova teoria, tudo parecia que se juntava novamente. Mais uma vez, parecia que a mensagem tinha sido entendida.

No entanto, o major Mac-Nabs, que tinha em vista não o enfraquecer dos argumentos de Paganel, e muito menos refutá-los, pois achava-os sérios, subtis, dignos de toda a atenção, e que deviam com muita razão formar a base das suas investigações futuras, desejava, porém, que fossem submetidos a um último exame, a fim de que o seu valor se tornasse irrefutável e irrefutado. Quando tinham estudado pela primeira vez os três documentos, tinha-lhes parecido evidente a sua interpretação e não tinham tido a tal respeito qualquer sombra de dúvida. Mais tarde, quando Jacques Paganel embarcou no Duncan e foram-lhe apresentados os documentos, ele tinha aprovado sem reserva a projetada exploração da costa americana. E, contudo, tinham-se enganado. Assim, para Mac-Nabs, talvez, depois da Austrália, um outro país ofereceria o mesmo grau de certeza, e se, depois de concluída a nova exploração, não lhes pareceria “evidente” que as pesquisas se deviam dirigir para outro lado?

Mac-Nabs desejava, pois, que se fizesse novo exame, antes de seguir o rumo da Austrália. Examinados escrupulosamente os documentos e os mapas, bem como os pontos, pelos quais passava o paralelo trinta e sete, foram sendo rejeitados sucessivamente por Jacques Paganel as ilhas de Tristão da Cunha, as ilhas Amsterdão, a Nova Zelândia e a ilha Maria Teresa, pois nenhum dos documentos, em inglês, francês ou alemão, tinha palavras ou fragmentos de palavras que evocassem estes territórios. Só sobrava a Austrália, que encaixava perfeitamente nos documentos.

Assim, lá foram para a Austrália, onde tão pouco encontraram o Capitão Grant. Por acaso, ao dar uma olhadela num jornal da Nova Zelândia, Jacques Paganel concluiu que a “Teoria da Austrália” também estava errada: o Capitão Grant tinha de estar na Nova Zelândia. Leu os documentos à luz desta teoria e tudo parecia que novamente se concatenava. A expedição partiu para a Nova Zelândia, mas tão pouco lá encontraram o Capitão Grant. Os passageiros do Duncan acabam por encontrar o Capitão Grant, por acaso, num local, a ilha de Maria Teresa, que tinha sido descartado por Paganel. O Capitão Grant explicou-lhes o documento e tudo mais uma vez se encaixou. E todos ficaram a saber como a história realmente tinha acontecido.

Perante a narrativa de Harry Grant, Jacques Paganel revolvia no cérebro as palavras do documento, passando pelo espírito as três interpretações sucessivas e todas elas falsas. De que forma estava a ilha de Maria Teresa indicada naqueles papéis? Harry Grant, para aumentar as probabilidades de salvamento, tinha encerrado na garrafa três documentos, escritos em três línguas, cujo conteúdo era idêntico, apenas com um nome de diferença: nos documentos em inglês e alemão, vinha a referência à ilha de Maria Teresa, referência essa que o mar tinha apagado, enquanto no documento em francês vinha a designação francesa de ilha Tabor, tendo o mar apagado o T maiúsculo e originando, assim, três interpretações “inquinadas” desde o início.

Como Agnes Heller (1929-2019) escreveu (HELLER, 1993, p. 96-98, 101-105, 169-173 e 203-204), a história dos filhos do Capitão Grant delineia tudo aquilo de que trata a historiografia, embora com uma diferença: quando viajamos no tempo e não no espaço, nunca encontramos o Capitão Grant vivo. Ninguém poderá contar-nos aquilo que realmente aconteceu e como foi. Não há um final feliz, aliás não há final algum, depois que o Duncan, símbolo do presente, parte em direção do oceano do passado. A historiografia lida sempre com o passado. Tal afirmação parece um lugar-comum, mas não é. Benedetto Croce (1866-1952), Robin George Collingwood (1889-1943) e Edward Hallett Carr (1892-1982), por exemplo, desafiaram-na, declarando que a historiografia lida sempre com o presente. O problema não é se o tema da historiografia seja o passado ou o presente, mas se este tema serve apenas como meio para lidar com os problemas do presente. No que diz respeito ao tema, a historiografia sempre excluiu o passado de nosso presente e tratou sempre do passado histórico. Por exemplo, no caso dos filhos do Capitão Grant, o navio Britannia já havia sofrido o seu destino quando começaram as buscas pelos sobreviventes. Não obstante, aquilo que pertence ao passado do presente e ao passado histórico é determinado pela própria consciência histórica, ou seja, pela consciência de uma idade presente da qual a historiografia é apenas uma das suas expressões. Assim, a afirmação de que o tema da historiografia é o passado implica uma outra afirmação: a historiografia não decide sozinha a simples questão sobre o que é o passado. No caso da aventura dos filhos do Capitão Grant, o passado começa com o Britannia zarpando de Glasgow. O que quer que tenha acontecido antes disso estava fora do tempo de interesse dos passageiros do Duncan. Os historiadores do barco do presente denominado Duncan decifraram não apenas alguma informação aleatória, mas novos dados. Ninguém sabia do destino do Britannia antes que a mensagem fosse lida. Naturalmente, o novo item de informação estava relacionado com o antigo. Neste caso, todos sabiam que o Britannia zarpara de Glasgow. A historiografia lê as mensagens do passado, na medida em que relaciona novos itens de informação com os velhos. A norma de Leopold von Ranke (1795-1886), segundo a qual devemos descrever um acontecimento de modo como ele realmente aconteceu, pode ser contestada se tivermos em mente que historiografia é sempre teoria. A mensagem na história dos filhos do Capitão Grant tinha sido lida três vezes, dando origem a outras tantas teorias e em todas as três reconstruções do texto tudo se concatenava perfeitamente. Contudo, de facto, o Capitão Grant não estava em nenhuma dessas regiões geográficas. Havia, pois, um quarto modo de ler a mensagem, segundo o qual ela não foi lida.

E é esta incapacidade de ler, descrever o Passado, que nos leva até à próxima obra de ficção, Possession de A. S. Byatt (Antonia Susan Drabble).

 

Posse(ssão)

Publicado originalmente em 1990, Possession: A Romance foi um êxito de vendas, tendo ganho o Booker Prize para ficção desse mesmo ano e sido adaptado para cinema em 2002 e para rádio entre 2011 e 2012. O livro explora as preocupações pós-modernas de obras semelhantes, que são normalmente caracterizadas como metaficção historiográfica, um tipo que mistura abordagens quer da ficção histórica quer da metaficção (EL-SAWY, 2015).

Ao ler o livro, acompanhamos as aventuras de dois académicos contemporâneos, Roland Michell e Maud Bailey, entre 1986 e 1987, enquanto pesquisam e avançam pelo caminho deixado por um conjunto de cartas de amor, até então desconhecidas, entre dois famosos poetas ficcionais, Randolph Henry Ash e Christabel LaMotte, da época Vitoriana, tentando encontrar a verdade antes de colegas rivais. Assim, é possível acompanhar duas narrativas em paralelo: aquilo que acontece(u) no século XIX, entre 1853 e 1868, e aquilo que acontece agora enquanto os académicos tentam reconstruir esse mesmo percurso. O título, Possession, remete para muitos dos temas do livro: as questões de posse e autonomia entre os amantes; a prática de colecionar artefactos culturais considerados como historicamente importantes; e a posse que os biógrafos sentem em relação aos seus sujeitos de estudo (STEVEKER, 2017).

Roland Michell, enquanto faz pesquisa na London Library, descobre rascunhos manuscritos de uma carta pelo famoso poeta Vitoriano Randolph Henry Ash, que o leva a desconfiar que o casado Ash tinha tido um caso amoroso até então desconhecido. Michell leva consigo secretamente os documentos – algo que é considerado como revelando falta de profissionalismo e de ética por parte de um académico – e começa a sua investigação, que o leva até Christabel LaMotte, uma poetisa (considerada) menor e contemporânea de Ash, e até Maud Bailey, uma académica de renome e especialista em LaMotte, além de ser da sua família, ainda que distante.

Os dois académicos encontram mais cartas e provas de um caso amoroso entre os poetas, com fortes suspeitas de que a relação teria sido consumada, e acabam obcecados em descobrir a verdade. Por causa da importância dos poetas em causa, a revelação de um caso entre Ash e LaMotte faria sensação e cabeçalhos, e traria reputação a ambos os académicos, pelo que colegas de Roland e Maud se tornam rivais na corrida para descobrir a verdade. Vem-se a saber que o casamento de Ash ficou por consumar, se bem que ele tivesse amado e permanecido devotado à sua esposa, Ellen. Ash e LaMotte tiveram uma curta e apaixonada relação, que levou ao suicídio de Blanche Glover, a companheira, e possivelmente amante, de LaMotte, e ao nascimento secreto da sua filha ilegítima, Maia. LaMotte deixou a rapariga com a sua irmã para que esta a criasse e a assumisse como se fosse sua. Ash nunca foi informado de que tinha tido uma filha com LaMotte.

A campa de Ash é exumada pelos académicos modernos, pois existe a informação de que, quando o poeta foi enterrado, a esposa de Ash tinha colocado uma caixa com documentos, que eles acreditam deter a resposta final para o mistério. Além dos documentos, também encontram uma mecha de cabelo, que atribuem a LaMotte. Ao ler os documentos, Maud Bailey fica a saber que, em vez de ser da família da irmã de LaMotte, tal como ela tinha sempre acreditado, ela descende diretamente de LaMotte e de Ash através da sua filha ilegítima, pelo que é a herdeira de toda a correspondência.

No epílogo, Ash tem um encontro no campo com a sua filha Maia, sem lhe dizer quem é na verdade, e conversa com ela e a quem faz, e oferece, uma coroa de flores, enquanto lhe pede uma mecha do seu cabelo. Assim, ficamos a saber que os pesquisadores modernos, e os leitores, durante boa parte do livro, estiveram enganados quanto ao significado de uma das lembranças mais importantes de Ash. O poeta pede à criança que entregue a LaMotte uma mensagem na qual ele diz que seguiu em frente e que é feliz. À medida que Ash se afasta, Maia regressa a casa, desfaz a coroa de flores enquanto brinca, e esquece-se de entregar a mensagem a LaMotte.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BYATT, A. S. Possession: A Romance. New York: Random House, 1990.

HELLER, Agnes. Uma Teoria da História. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1993.

EL-SAWY, Amany Mahmoud. A. S. Byatt’s Possession and Historiographic Metafiction. The Asian Journal of English Language & Pedagogy, v. 3 (2015), p. 145-160.

STEVEKER, Lena. 22. A. S. Byatt, Possession (1990). In REINFANDT, Christoph (ed.). Handbook of the English Novel of the Twentieth and Twenty-First Centuries. Berlin/Boston: De Gruyter, 2017, p. 445-460.

VERNE, Jules. Les Enfants du Capitaine Grant. Paris: Hetzel, 1868.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Domínio público – autor Édouard Riou (1833-1900)

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Carimo Mohomed

Carimo Mohomed nasceu em Lourenço Marques (Moçambique) em 1973, e vive e trabalha em Lisboa. Licenciou-se em História (1995); especializou-se em Ciências Documentais (Biblioteca e Documentação, 2004), e em Cultura, Civilização e Religião Islâmicas (2006); e doutorou-se em Teoria e Análise Política (2012). Membro de várias associações académicas e de corpos editoriais de diversas publicações científicas internacionais, tem como áreas de interesse e de investigação a História e o Pensamento Político Contemporâneos do Mundo Islâmico bem como as relações entre Religião e Política, e os impactos da Modernidade, em diversos contextos civilizacionais e culturais, e a forma como a História e a Historiografia são criadas e usadas politicamente.

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