Como muitos outros povos da América, Ásia, África e Oceania, o Brasil foi colonizado por povos de origem europeia. Colonizadores que, além das ações de exploração econômica, exploraram e destruíram os saberes e fazeres de milhares de povos. Constituíram sistemas jurídicos, políticos, ideológicos, religiosos e culturais que justificaram todas as atrocidades cometidas e impregnaram de inúmeros desqualificativos o que era próprio dos povos originários – os então declarados bárbaros, incivilizados, pagãos, incultos.
Apesar de todas as tentativas de domínio total de corpos e mentes, as resistências sempre foram oferecidas de múltiplas formas. Mesmo com as independências políticas, a colonização epistêmica se manteve em muitos espaços e povos, quer pelo predomínio das formas de pensar e produzir conhecimentos pautados na racionalidade técnica instrumental, quer pelo desprezo e desqualificação, até mesmo internamente, dos saberes milenares.
A História escolar foi/é, em grande parte, ensinada nos princípios epistemológicos do colonizador branco, masculino, racional, cristão e heteronormativo europeu. Fazemos um ensino de história que invisibiliza os conhecimentos e saberes dos povos indígenas, afro-brasileiros, quilombolas, ciganos, camponeses, ribeirinhos, etc. Nessa esteira, a escola de modo geral e particularmente o ensino de História tem contribuído para uma sociedade calcada em práticas preconceituosas e discriminatórias quando, em boa parte das aulas, não problematiza o currículo eurocentrado, branco e racista, masculino, cristão. Em síntese, a colonialidade continua operando para a “inferioridade de grupos humanos não europeus do ponto de vista da divisão racial do trabalho, do salário, da produção cultural e dos conhecimentos” (OLIVEIRA 2012, p. 54).
Em contraposição a todas as formas de colonialidade como a epistêmica, a colonialidade do poder, a colonialidade dos seres e a colonialidade da natureza, especialmente a partir do último quartel do século XX começamos a experimentar uma virada epistemológica na produção de conhecimentos e na aceitação/diálogos com saberes outros para além daqueles de origem acadêmica e especialmente eurocêntrica. Em várias partes do mundo constituíram-se grupos, trocas, debates, palestras, pesquisas, publicações sobre o que vem sendo denominado, com algumas variações, de pensamento pós-colonial, descolonial ou decolonial. Por questão de espaço não farei a diferenciação entre eles.
O pensamento decolonial – pelo qual faço a opção – vem buscando romper com as colonialidades vividas pelos povos não europeus. Esta abordagem epistêmica vem sendo desenvolvida principalmente por estudiosos latino-americanos da decolonialidade, especialmente o Grupo Modernidade/Colonialidade, dentre os quais destacamos Aníbal Quijano (2014), Catherine Walsh (2017), Edgard Lander (2005), Enrique Dussel (2016), Maria Lugones (2014), Nelson Maldonado-Torres (2007), Ramon Grosfoguel (2011), Santiago Castro Gomez (2005), Walter Mignolo (2010), bem como pelos brasileiros Claudia Miranda (2017), Luis Fernandes Oliveira (2012), Maria Antonieta Martinez Antonacci (2015), Nilma Lino Gomez (2018) e outros. No conjunto de autores da decolonialidade percebe-se uma abertura de possibilidades outras para a produção de conhecimentos, especialmente os histórico-educacionais; para formas múltiplas de ser; para a valorização de saberes e fazeres diversos e valorização das experiências vividas.
Nesse emaranhado de vozes destaca-se que a decolonização dos saberes, poderes, seres e natureza se constitui para: a) buscar a desconstrução das metanarrativas sobre a modernização, racionalização e progresso procurando restaurar as vozes, as experiências, as identidades, as histórias dos subalternos e a importância das comunidades periféricas, as memórias coletivas, articular o sensível e o conceitual; b) desfazer a cultura do silêncio, as contradições opressor-oprimido rearticulando-as para superação das marcas profundas da colonialidade inscrita na memória social dos povos colonizados; c) o pensamento atuar como um semeador que semeia ideias e premissas prenhes de indignação e esperança num mundo onde a vida seja a fonte, centro e fim da cultura de cuidado com o outro; d) romper com a invisibilidade dos ditos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, ou indígenas parando de tratá-los como crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos; e) romper com dicotomização que coloca de um lado a ciência, a filosofia e a teologia e, de outro, como menores e desqualificados, todos os conhecimentos que não seguem a racionalidade e cientificidade; f) pautar-se numa epistemologia que abrange todos os saberes estabelecendo as condições da sua produção e validação sem hierarquização; g) não desqualificar nenhum saber, embora considerando diferenças entre eles incluindo-os num repertório alargado de “ciências” ou de saberes científicos; h) definir-se por pensamentos de fronteira como resposta crítica aos fundamentalismos exige um pensamento mais amplo que o cânone ocidental (incluindo o cânone ocidental de esquerda) e assim estabelecer um diálogo crítico entre os diversos projetos políticos/éticos/epistêmicos, apontados a um mundo pluriversal; i) levar a sério as perspectivas/cosmologias/visões de pensadores a partir de corpos e lugares étnico-raciais/sexuais subalternizados; j) lutar contra uma monocultura do saber, não apenas no campo teórico, mas na prática constante dos processos de investigação; k) lutar contra o desperdício da experiência que o ocidente impôs ao mundo pela força.
Em síntese, a decolonização enfatiza que as possibilidades e os limites de compreensão e ação de cada saber só podem ser conhecidas a medida que cada saber se propuser a uma comparação com outros saberes. Nessa comparação, acontece uma ecologia de saberes como uma opção epistemológica e política que levará à integração entre o saber científico e os saberes dos camponeses, dos indígenas ou dos afrodescendentes, transformando-se em experiências transformadoras que conduzem à construção de um projeto de educação popular em que os múltiplos conhecimentos e a ciência participam em pé de igualdade.
Como esta perspectiva vem se efetivando? Com a opção pelo caminho que tem como meta o rompimento com as linhas abissais (SANTOS, 2010) que dividem as sociedades, especialmente a brasileira – e, por extensão, a educação brasileira, e, particularmente, o ensino de história. Para tanto, precisamos decolonizar os saberes, para: AVANÇAR na conquista de direitos sociais; ROMPER com as verticalizações históricas; BUSCAR novas epistemologias que nos desafiem a produzir conhecimentos históricos outros com outras metodologias, com outras perguntas; PENSAR A DIVERSIDADE de histórias, da educação; FAZER da educação espaço de lutas pela não separação dos sujeitos conforme a sua condição social; INCORPORAR novas perspectivas teórico-metodológicas; DIALOGAR com outros espaços de produção de conhecimentos como países do eixo Sul, países latinos, universidades para além do eixo Sul-Sudeste brasileiro; FAZER pesquisas de forma a dialogar com os sujeitos e não sobre os sujeitos que fazem e fizeram outras formas de educação e ensino de História; CONTINUAR aprendendo outras pedagogias, especialmente a da esperança. Mas, acima de tudo – como nos ensinou o mestre Paulo Freire – manter a pedagogia da indignação, na qual estar no mundo…
[…] significa estar com ele e com os outros, agindo, falando, pesando, refletindo, meditando, buscando, inteligindo, comunicando o inteligido, sonhando e refletindo-se sempre a um amanhã, comparando, valorando, decidindo, transgredindo princípios, encarando-os, rompendo, optando, crendo ou fechados às crenças. O que não é possível é estar no mundo, com o mundo e os outros, indiferentes a uma certa compreensão de porque fazemos o que fazemos, de a favor de que e de quem fazemos, de contra que e contra quem fazemos o que fazemos. O que não é possível é estar no mundo, com o mundo e com os outros, sem estar tocados por uma certa compreensão de nossa própria presença no mundo. Vale dizer, sem uma certa inteligência da História e de nosso papel nela (FREIRE, 2000, p.125).
Como instrumento de luta em prol do empoderamento de grupos sociais subalternizados numa perspectiva decolonial, busco concepções de memórias e de ensinos de história que vão à contracorrente, que caminham por outros tempos-espaços e outras concepções de poder, de ser, de conhecimento e de natureza que, talvez, nos ofereça chaves de compreensão e atuação na busca de conquistas sociais outras na possibilidade efetiva de maior justiça social, política, cognitiva e econômica.
Para não encerrar o debate, penso que as proposições decoloniais podem colaborar para a divulgação de conhecimentos libertadores e contra-hegemônicos nos ambientes acadêmicos, nas salas de aula da Educação Básica, na formação de professores, ou em espaços educativos não formais junto com os movimentos sociais, podendo contribuir para em prol de uma sociedade com mais justiça, empatia, tolerância, amorosidade e solidariedade.
REFERÊNCIAS
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DUSSEL, Enrique. Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a partir da filosofia da libertação. Revista Sociedade e Estado. Volume 31 números 1 Janeiro/Abril 2016. p. 51-73.
FREIRE, Paulo Reglus. Pedagogia da Indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2000.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro e a intelectualidade negra descolonizando os currículos. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiáspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018, p.223-246. (Coleção cultura negra e identidade).
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OLIVEIRA, Luiz Fernandes. História da África e dos africanos na escola: desafios políticos, epistemológicos e identitários para a formação dos professores de História. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2012.
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WALSH, Catherine. Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo II. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2017.
Crédito da imagem: Estudante durante aula de artes em escola do Rio de Janeiro, outubro de 1961. Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.
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