skip to Main Content

Notre-Dame de Paris no rescaldo das chamas: da história à reconstrução

Notre-Dame, notre chère cathédrale, témoin de tant d’événements majeurs de notre pays, a été détruite par un incendie effrayant après avoir résisté si longtemps aux péripéties de son histoire. La France pleure et avec elle tous ses amis du monde entier. Elle est touchée au cœur car ses pierres sont le témoignage d’une espérance invincible qui, par le talent, le courage, le génie et la foi des bâtisseurs, a élevé cette dentelle lumineuse de pierres, de bois et de verre.
Michel Aupetit (Arcebispo de Paris), 2019, 16 abr.

Em Os pilares da terra, depois passado a série televisiva, Ken Follett descreve um incêndio na catedral de Kingsbridge. Agora, em entrevista a Le Figaro, conta que, para escrever essa cena, realizou algumas pesquisas para compreender como ocorreria um incêndio numa catedral, tendo percebido que, para atingir maiores proporções, deveria começar pelo telhado, cujo travejamento em madeira arderia mais facilmente do que o resto, fazendo derreter o chumbo do telhado o que, por sua vez faria colapsar a abóbada, causando a queda de toneladas pedra no interior da igreja, concluindo que: “Une grande église, c’est comme une toile d’araignée. Les éléments se soutiennent les uns les autres, normalement, quand l’un s’écroule, tout s’écroule” (Follett in Bastié, 2019, 15 abr.).

Incêndio na catedral de Notre-Dame
Paris, 15 de abril de 2019
Foto: Marin Dacos

Incêndio na catedral de Notre-Dame
Paris, 15 de abril de 2019
Foto: @samiaftah

E foi quase desta maneira que tudo aconteceu, na 2.ª feira da Semana-Santa, por volta das 18:30, na catedral de Notre-Dame, em Paris. O fogo começou junto à base do pináculo, propagou-se rapidamente ao travejamento em madeira de carvalho e consumiu a cobertura da nave e levou à derrocada de cerca de um terço da abóbada na zona do transepto. Não são ainda conhecidas as razões do incêndio gigantesco – tudo aponta para que tenha sido um curto-circuito num elevador dos andaimes montados para a campanha de restauro que estava em curso para retirar a camada de chumbo que, além de pesada, estava oxidada e furada nalguns pontos – que, durante a noite, continuou a consumir a igreja, mas foram momentos de horror e estupefação que nos mantiveram presos às imagens da queda do pináculo, com quase 100 metros de altura, sobre o transepto.

A catedral, obra matricial do gótico (Henriet, 2005), património que sentimos nosso, estava ferida, gravemente ferida.

Historial do edifício

A construção da catedral de Notre-Dame teve início em 1163, durante o bispado de Maurice de Sully (1160-1197), durante a estadia na cidade do papa Alexandre III, o qual terá colocado a primeira pedra, e prosseguiu com o seu sucessor Odon de Sully (1197-1208). Depois do trabalho moroso nas fundações, dificultado pelo solo húmido da ilha de França, trabalho à superfície começou com o coro e prosseguiu rapidamente: em 1177, a cabeceira estava terminada, à exceção das abóbadas e o altar-mor foi consagrado pelo legado papal, em 1182. Terá sido por essa altura iniciada a construção da nave, de leste para oeste, até ao quarto tramo, já com outro pedreiro que introduziu modificações e inovações à gramática da cabeceira. Em 1208, começou a construção da fachada, enquanto a nave avançava, agora de oeste para leste.  Por altura da morte de Maurice de Sully, a fachada e a nave estavam em construção. A nave estaria praticamente concluída por volta de 1210, enquanto prosseguiam os trabalhos na parte superior da fachada e nas torres. A nave, construída de leste a oeste e dirigida por um segundo mestre pedreiro, certamente foi iniciada enquanto o coro superior estava em construção. Apesar de sua semelhança superficial com o coro, a nave incorpora importantes modificações e inovações. A nave provavelmente estava substancialmente completa por volta de 1210.

“The Right Hand of God Protecting the Faithful against the Demons”, vendo-se, ao fundo, a fachada da catedral de Notre-Dame
Jean Fouquet,ca. 1452–1460
In: Livro de Horas de Étienne Chevalier
Nova Iorque, The Metropolitan Museum of Art

O trabalho continuou nas décadas seguintes nas partes superiores da fachada e das torres ocidentais, enquanto, a partir de 1220, uma série de campanhas introduzia alterações na nave, com a abertura das capelas laterais, a colocação de janelas altas no clerestório, a supressão do antigo trifório, bem como nos braços do transepto, retirando-lhes os traços românicos originais.  Na segunda metade do século XIII, conhecem-se os nomes dos mestres de obras Jehan de Chelles, responsável pelo prolongamento do transepto norte e pela colocação da respetiva rosácea, Pierre de Montreuil, que dirigiu idênticas alterações no transepto sul, Pierre de Chelles, que construiu o jubeu e iniciou as capelas do coro, Jean Ravy, que lançou os arcobotantes do coro, Jean le Bouteiller e Raymond du Temple que terminaram a obra. As torres estavam concluídas em 1250, abandonando o projeto de colocar campanários e remates de flecha, mas a construção das capelas na zona do coro prolongou-se até ao século XIV. A obra foi considerada terminada durante o reinado de Louis IX, dito “le Prudhomme” e comummente designado como São Luís de França.

Relicário da Santa Coroa
Tesouro da Catedral
Paris, Notre-Dame

Relíquia da Santa Coroa
Entre as relíquias primaciais da catedral, encontra-se a Santa Coroa (Cerf, 1955). De acordo com o texto dos Evangelhos sinópticos de Marcos (Mc 15, 17) e Mateus (Mt 27, 29) e o de João (Jn 19, 2) e com o prenúncio veterotestamentário de Jeremias (Jr 10, 9), antes da crucificação, os soldados romanos colocaram uma coroa de espinhos (corona spinea) sobre a cabeça de Cristo, numa grotesca paródia à sua alegada condição  real, juntamente com os restantes atributos de pseudo-realeza (o manto e o cetro). Segundo a tradição, em 326, santa Helena, a mãe do imperador Constantino, recolheu as relíquias da Paixão que teriam sido recolhidas por famílias cristãs. A referência explícita à corona spinea remonta à segunda metade do século IV e surge em Constantinopla em meados do século X. No tratado De Ceremoniis (das cerimónias), atribuído a Constantino VII, o Porfirogénito, é descrita uma impressionante e crescente coleção de relíquias da Paixão no palácio dos imperadores do Oriente, entre as quais a Sagrada Coroa. Na sequência do saque de Constantinopla em 1204 (Dor, 2009, cap. 4), a coroa e outras relíquias da Paixão são penhoradas e transferidas para Veneza, onde, em 1238, foram adquiridas por Luís IX de França, São Luís (Bozóky, 2006, p. 21), para as quais constrói a capela-relicário, a Sainte-Chapelle, em Paris, próxima da catedral de Notre-Dame, onde ficaram interinamente, após o depósito feito pelo próprio rei em 1239. “Avec la construction de la Sainte-Chapelle pour abriter ces reliques insignes, le roi créa un nouvel emblème du pouvoir sacral, sans se douter que son propre corps connaîtra également la gloire et les vicissitudes des reliques thaumaturges, auxiliaires du pouvoir” (id., p. 8). Durante a Revolução, a coroa, enquanto objeto patrimonial foi depositada no Gabinete de Medalhas da Biblioteca Nacional. A Concordata de 1801 determinou a devolução da relíquia ao arcebispo de Paris que, em 1806, a afetou ao Tesouro da Catedral de Notre-Dame, inicialmente sob a custódia dos cónegos do Capítulo e, depois, dos Cavaleiros do Santo Sepulcro, encarregues também da sua vigilância nas ocasiões de exposição solene, nas primeiras sextas-feiras do mês e em todas as sextas-feiras da Quaresma e Semana-Santa.

A partir daí, sucederam-se alterações, adições e embelezamentos ao gosto de cada época: no Renascimento, há notícia de esplendorosos revestimentos em tapeçaria para camuflar o aspeto gótico das paredes e colunas; durante o Barroco, Robert de Cotte substituiui o antigo jubeu por uma sumptuosa grade de ferro forjado e dourado, abrindo o coro sobre o deambulatório, enquanto uma grande quantidade de esculturas e pinturas invadiu o interior da igreja, com destaque para o notável conjunto conhecido como “les grands mays”.

Grand “Mays”: La Descente du Saint-Esprit
Jacques Blanchard, 1634
Paris, catedral de Notre-Dame

Les grands Mays
Em 1449, a Corporation des Orfèvres (Confraria dos Ourives) de Paris institui a offrande du May à Notre-Dame de Paris, dando origem a uma tradição que se manteve ativa ao longo dos séculos. Entre 1630 e 1707, esta oferta consistiu em pinturas de grandes dimensões (les grands mays), com cerca de 4m de altura, versando temas dos Atos dos Apóstolos de São Lucas, a maior parte das quais encomendadas a membros da Académie Royale de Peinture et de Sculpture, fundada em 1648, sendo os esboços submetidos à aprovação dos Cabido (Bastet, 2015). Por altura da Revolução, os quadros foram retirados e levados para os museus do Louvre e dos Petits-Augustins, mas alguns regressaram, ficando treze, de autoria de, entre outros, Laurent de la Hyre, Sébastien Bourdon, Charles Le Brun, expostas nas capelas da nave.

No contexto da Revolução, a catedral foi abrangida pelo “Décret des biens du clergé mis à la disposition de la Nation”, de 2 de novembro de 1789, tornando-se propriedade do Estado, o que não evitou uma série de atos de vandalismos que atingiram, nomeadamente, a galeria dos reis na fachada, cujas cabeças e outros fragmentos, entretanto recuperados, se encontram no museu de Cluny, em Paris, bem como as grandes esculturas dos portais.

Des câbles, attachés aux statues de rois qui décoraient la galerie occidentale, les arrachèrent de leurs niches séculaires. Les saints, les apôtres des façades, furent jetés sur la place. Un grand nombre de ces débris resta long-temps après la révolution amoncelé le long des chapelles du nord. Les statues du portail méridional furent ensevelies pour servir de bornes rue de la Santé. […] Les sépultures er monuments votifs intérieurs furent brisés et enlevés. (Lassus, & Viollet-le-Duc, 1843, pp. 21-22)

Em 1793, a igreja foi transformada em Templo da Razão, que pretendia substituir o culto católico, que se encontrava interdito.

Após a assinatura da Concordata em 1801 e efetivada no ano seguinte, a catedral foi novamente aberta ao público, submetendo-se a algumas obras de embelezamento de forma a que, em dezembro de 1804, pudesse ser palco da sagração do imperador Napoleão Bonaparte, na presença do Papa Pio VII.

Sacre de Napoléon (na catedral de Notre-Dame)
Jacques-Louis David, 1807
Paris, Musée du Louvre

Porém, a catedral estava num estado ruinoso conduzindo à hipótese de a derrubar. É nessa altura que Victor Hugo escreveu o romance Notre-Dame de Paris, publicado em 1831 com o objetivo, amplamente cumprido, de sensibilizar o público para a importância do monumento e para a urgência da sua salvaguarda, coincidindo com uma nova orientação política no contexto da Monarchie de Juillet (1830-1848), a qual procurava restabelecer a grandeza de alguns monumentos simbólicos do Ancient Régime. Assim, em 1843, os trabalhos de restauro da catedral Notre-Dame tiveram início sob a supervisão dos arquitetos Eugène Viollet-le-Duc e Jean-Baptiste-Antoine Lassus (vd. Lassus, & Viollet-le-Duc, 1843).

Notre-Dame antes da intervenção de Viollett-le-Duc, vista da Pont des Tournelles
Daguerreótipo: Louis Jacques Mandé Daguerre, 1838-1839

Flecha: plano e elevações
Viollet-le-Duc
Eugène Viollet-le-Duc, 1856
In: Dictionnaire raisonné de l’architecture française du XIe au XVIe siècle. Paris: B. Bance

Viollet-le-Duc que, após a morte de Lassus, em 1857, assume sozinho o comando da obra, estava muito ligado aos padrões da arquitetura gótica, quer pela sua qualidade estética, quer pela economia de meios que permitia: “Rendre à notre belle cathèdrale toute sa spendeur, lui restituer tiutes les richesses dont elle a été dépouillée, telle est la tache que nous nous sommes imposée […]” (Lassus, & Viollet-le-Duc, 1843, p. 28). Na catedral de Notre-Dame, teve a oportunidade de aplicar e desenvolver alguns princípios de restauro que já havia experimentado no restauro de outras igrejas, como a catedral de Saint-Denis, recusando a utilização de materiais modernos e privilegiando as técnicas medievais, com o propósito de devolver o edifício àquilo que considerava ser a sua essência original. A sua intervenção no edifício foi profunda, conferindo-lhe uma coerência estilística, mais em concordância com o seu gosto pessoal, do que historicamente fundamentada, mesmo se apoiada numa pretensa investigação arquivística e arqueológica.

Nous avons repoussé complètement toute modification, tout changement, toute altération, tant de la forme et de la matière que du système de construction. C’est avec un respect religieux que nous nous sommes mis à la recherche des moindres vestiges des formes altérés soit par le temps, soit par la main des hommes. Et lorsque ces renseignements nous ont manqué, c’est à l’aide de textes positifs, de dessins, de gravures et surtout en puisant des autorités dans le monument que nous avons procédé à la restauration. (Lassus, & Viollet-le-Duc, 1843, pp. 27-28)

Neste contexto, Viollet-le-Duc recolocou a flecha de 93m de altura que havia sido desmontada no século XVIII, por se temer a sua derrocada, recorrendo aos vestígios encontrados no local, bem como a referências de outras catedrais góticas, anexando-lhes na base as estátuas dos Doze Apóstolos imaginados por ele, num dos quais se atreveu a inserir um autorretrato. É precisamente este método de Viollet-le-Duc que, nas suas intervenções de restauro, não hesitava em acrescentar elementos de sua lavra, desenhos fantasiosos inspirados no imaginário medieval, que justificam grande parte da controvérsia em torno da sua atividade.

Depois da intervenção de Viollet-le-Duc, regista-se ainda um incêndio, durante a Commune de 1871, mas, em contrapartida, as duas guerras mundiais não a afetaram grandemente. Nas últimas décadas, tem sido alvo de várias intervenções de limpeza e restauro, a última das quais terá ocasionado o acidente que resultou no trágico incêndio do passado 15 de abril.

Ao longo da sua existência, aí ocorreram factos que perduram na memória do edifício: o depósito da Santa Coroa, por São Luís, em 1239; a sagração de Napoleão Bonaparte, em 1804; os casamentos de Marie Stuart com o delfim François, futuro François II, em 1558, e de Marguerite de Valois com Henri de Navarre, futuro Henri V, em 1573; as exéquias nacionais de individualidades proeminentes na sociedade francesa, como o presidente Raymond Poincaré, em 1934, ou o poeta Paul Claudel, em 1955; as cerimónias de homenagem nacional a Charles de Gaulle, em 1970, a Georges Pompidou, em 1974 e a François Mitterrand, em 1996.

Notre-Dame de Paris (t. 2): frontispício da 3.ª ed.
Victor Hugo
Paris: C. Gosselin.
Paris, BnF / Gallica

Além de cenário à história de Quasimodo enamorado pela cigana Esmeralda, contada por Victor Hugo, em Notre-Dame de Paris. O romance de  transposto depois para o cinema em, em 1939, em The hunchback of Notre Dame (O corcunda de Notre-Dame), dirigido por William Dieterle, com Charles Laughton e Maureen O’Hara nos principais papéis, a que se seguiram muitos outros, entre os quais se pode destacar, em 1956, o Notre Dame de Paris, de Jean Delannoy, com Gina Lollobrigida e Anthony Quinn. Também a Disney agarrou o enredo no filme de animação The hunchback of Notre Dame, em 1996, retomando a história no enquadramento das gárgulas e torres sineiras.

O corcunda de NotreDame: frame
Disney, Warner Bros

Foi também inspiração de artistas, como os irmãos Limbourg, que representam o edifício entre as iluminuras do Les très riches heures du Duc de Berry, ou de poetas, como Théophile Gautier, que introduziu o poema “Notre-Dame” na obra La comédie de la mort (1838), ou Charles Péguy que lhe dedicou um extensíssimo poema, incluído na obra Porche du mystère de la deuxième vertu, em 1911.

Foi, além disso, o cenário do jogo Assassins creed unit que inclui a reprodução detalhada da catedral em 3D virtual, criada com base nas plantas reais e documentos históricos, assim como em imagens recolhidas para o efeito, incluindo imagens dos painéis em madeira que arderam. Embora a generalidade dos cenários se reporte a Paris do século XVIII, inclui um assumido anacronismo: a inclusão do pináculo novecentista. O manancial de informação, em muitas horas de aturada recolha e investigação  cruzada da informação está, agora, disponível para auxiliar nos trabalhos prévios conducentes à recuperação, como constitui mais um relevante contributo para a memória do edifício.

Os danos do incêndio

As chamas destruíram integralmente o grande pináculo, a “flecha” ou a “agulha” central, feito em madeira e chumbo e que se erguia no cruzeiro do transepto, bem como o travejamento em madeira e grande parte da cobertura de chumbo. O exterior, em particular, na parte oriental, ficou bastante danificado, mas os bombeiros conseguiram manter o fogo afastado da fachada principal, a ocidente. Além disso, as estátuas do Apostolado que se encontravam na base do pináculo haviam sido retiradas na semana anterior.

Não é possível, ainda, avaliar o impacto da temperatura elevada e da água na estrutura essencialmente constituída por calcário luteciano, cujo aglutinante é uma argamassa à base de cal, sendo conhecido que o calor excessivo fragiliza a pedra. No interior, os danos ao nível do solo também derivam do calor e dos efeitos colaterais do combate ao incêndio. De acordo com o que tem vindo a ser divulgado, o impacto não terá sido tão devastador como a violência das chamas fazia prever: os vitrais das três rosáceas mantiveram-se no lugar, embora tenham sofrido danos; o tesouro da catedral, instalado na sacristia desde cerca de 1850, a sul do edifício, e a cripta, onde se encontram numerosos artefactos galo-romanos e vestígios de uma casa da antiga Lutèce, não foram tão pouco atingidos; o órgão também poderá ser recuperado. As espécies consagradas e as relíquias insignes, entre as quais a Santa Coroa, os quatro bocados ditos da cruz de Cristo e um dos cravos da sua crucificação, bem como a túnica e a disciplina de São Luís, todas foram preservadas (Biétry-Rivierre, 2019, 16 abr). O galo que rematava o pináculo caído e que continha um fragmento da Santa Coroa, um fragmento de osso de São Dinis e outro de Santa Genoveva, foi resgatado dos escombros.

Infográfico do impacto do incêndio em Notre Dame
LP Infographie, 2019
In: Le Parisien

Os danos mais relevantes registam-se na cobertura.

O travejamento original, de finais do século XII, foi substituído entre 1220 e 1240 por uma nova estrutura em carvalho, embora continuasse a ser uma das mais antigas de Paris, juntamente com a de Saint-Pierre de Montmartre (1147). Com mais de 100m de comprimento, por uma largura de 13m na nave e 40m no transepto e por uma altura de 10m, é conhecida como a “floresta” de Notre-Dame, devido à sua complexidade e ao elevado número de vigas – além de que, para a sua construção, foi efetivamente consumida uma floresta de cerca de 1300 carvalhos. O travejamento na zona do transepto e do pináculo central foi substituído durante a intervenção de Viollet-le-Duc, que utilizou vigas de maiores dimensões. Sobre esta estrutura de madeira, encontrava-se um revestimento de chumbo, constituído por 1326 placas de 0,5cm de espessura e um peso calculado de 210 toneladas. O pináculo que caiu tinha à volta de 500 toneladas madeira e 250 toneladas de chumbo. Enquanto a madeira arde, o chumbo, sob temperaturas elevadas, atingiu o ponto de fusão e sublimou ou fundiu sobre a nave central.

A reconstrução: que reconstrução?

Assim que chegou ao local do incêndio, o presidente Emmanuel Macron prometeu ao país (e ao mundo) a reconstrução da catedral: “Cette cathédrale, nous la rebâtirons”.

Estava lançada a discussão: reconstruir o quê? e como?

A UNESCO, que prometeu acompanhar os trabalhos em Notre-Dame, tem vindo a manifestar alguma preocupação com a utilização de novos materiais (nomeadamente, o cimento), que descaraterizam e falsificam os monumentos. Embora seja menos incisiva em relação à manutenção do espírito do lugar, nas suas dimensões intangíveis e simbólicas, o número 86 (março de 2018) da revista da UNESCO Patrimoine Mondial organizou um caderno especial intitulado “Patrimoine mondial et reconstruction”, onde se destaca o artigo “Reconstruire à l’âge de la globalisation”, de Jad Tabet.

Nas dinâmicas do património, a preservação corresponde a um processo de seleção e, por conseguinte, a contínuas decisões acerca do que deva ser mantido e da forma como deva ser recuperado. E todas estas questões estão relacionadas com o conceito da autenticidade e, por inerência, com a perceção da identidade inerente ao monumento. No entanto, estes são conceitos fluidos, com diferentes significados e implicações, consoante os contextos culturais de referência, incluindo aquilo que Smith (2006) designava como o “authorized heritage discourse” (AHD) ocidental e eurocêntrico. Ao contrário das culturas orientais, o Ocidente tende a centrar-se na fisicalidade do monumento, isto é “the emphasis placed on the idea of material authenticity, and the preservationist desire to freeze the moment of heritage and to conserve heritage as an unchanging monument to the past” (Smith, 2006, pp. 5-6).

Historicamente, o conceito de autenticidade (ou a reflexão acerca do conceito) é relativamente recente, remontando à Europa Oitocentista (vd., por ex. Ruskin, 1849), sendo depois definido no quadro da UNESCO, nomeadamente na Carta de Veneza: Sobre a conservação e restauro dos monumentos e sítios, onde é efetivamente referido, no art. 9:

[O restauro] Destina-se a preservar e a revelar os valores estéticos e históricos dos monumentos e baseia-se no respeito pelos materiais originais e por documentos autênticos. Não devem ser empreendidos restauros quando se está em presença de hipóteses visando reconstituições conjeturais. Nestes casos, qualquer acrescento ou complemento, que se reconheça indispensável, por razões estéticas ou técnicas, deverá harmonizar-se arquitetonicamente com o existente e deixar clara a sua contemporaneidade. (UNESCO, 1964)

O tema tem vindo a ser amplamente analisado no âmbito dos estudos do património desde os trabalhos seminais de MacCannell (1976) e Hobsbawm (1983), que identifica a “‘invented tradition”, a que Cohen (1988) contrapõe com a “emergent authenticity”. Mais recentemente, Silverman defendia que “Contemporary authenticity is the new authenticity” (2015, p. 84), para concluir que:

Contemporary authenticity works from the premise that society generates new contexts in which human beings produce meaningful acts and objects without necessarily bringing the past ‘faithfully’ into the present. In this social constructivist view, current performances and consumptions of identity and place are as valid as those historically legitimated. (Id., pp. 85)

Abre-se, aqui, um leque de hipóteses acerca do que poderá vir a ser feito, à exceção das tentativas de reconstituição ao “modo antigo” – qualquer que ele seja, entre a construção medieval e a renovação de Viollet-le-Duc.

A fruição e o uso do património, na medida em que induzem ao conhecimento e à ligação afetiva do sentimento de pertença, são fatores essenciais à sua preservação e à continuidade do espírito do lugar. Neste caso particular, há um contributo suplementar: sendo um dos monumentos mais visitados, fotografados e noticiados do mundo, é também e por isso mesmo um dos mais documentados. Será fácil reconstituir aquilo que foi através da enorme quantidade de registos existentes. Isso, porém, não implica reconstruir o edifício, procurando recuperar a materialidade perdida. A reconstituição, a recuperação daquilo que foi e daquilo que se perdeu, não é necessáriamente física. A quantidade de imagens e de textos publicados nestes dias prova que a memória pode ser virtual.

Desde o dia 15 de abril de 2019, o incêndio faz parte da catedral de Notre-Dame, da sua tessitura arquitetónica, histórica e simbólica. É um acontecimento a juntar a outros factos aí ocorridos e que fica, também ele, agarrado à memória do lugar. As pedras caídas, o enorme vazio aberto no topo, as paredes desmoronadas e negras, as marcas que o fogo deixou são, hoje, parte integrante e indelével da história de Notre-Dame. São a cicatriz que não se apaga num corpo que, apesar disso, continua vivo e renasce no meio das cinzas. A manutenção da autenticidade do monumento tem, por isso, de integrar estas marcas porque, hoje, elas fazem parte da sua história – como se lhe tivessem sido vincadas mais umas quantas rugas profundas a testemunhar a passagem do tempo – mas sem renunciar às evidências do tempo presente. Qualquer que seja a intervenção de restauro que venha a ser definida e realizada, que ela seja própria da época em que acontece, sem ceder à tentação de copiar o que foi próprio de um tempo já passado. Que a recuperação deste monumento ferido pelo fogo respeite a dignidade que ele e a sua longa história merecem.

Referências bibliográficas:
Bastié, E. (2019, 15 abr.). Ken Follett [entrevista]: «Les cathédrales sont le cœur de notre patrimoine européen». Le Figaro. Acedido em http://www.lefigaro.fr/vox/culture/ken-follett-les-cathedrales-sont-le-coeur-de-notre-patrimoine-europeen-20190416
Bastet, D. (2015). Les grands mays de Notre-Dame de Paris (1630-1707), au seuil de la notion de sublime. In S. Hache & T. Favier (Thierry), À la croisée des arts: Sublime et musique religieuse en Europe (xviie-xviiie siècles) (pp. 207-219). Paris: Classiques Garnier.
Biétry-Rivierre, E. (2019, 16 abr.). Notre-Dame: premier inventaire des dégâts pour les œuvres et le bâti. Le Figaro. Acedido em http://www.lefigaro.fr/actualite-france/notre-dame-premier-inventaire-des-degats-pour-les-oeuvres-et-le-bati-20190416
Bozóky, E. (2006). La politique des reliques de Constantin à Saint Louis: Protection collective et légitimation du pouvoir. Paris: Beauchesne.
Cerf, L. (1955). Histoire de la couronne d’épines. Historia, (101), 453-455.
Cohen, E. (1988). Authenticity and commoditization in tourism. Annals of Tourism Research, (15), 371–386.
Dor, P. (2009). Les épines de la Sainte Couronne du Christ en France. Paris : Office d’Édition Impression Librarie.
Henriet, J. (2005). À l’aube de l’architecture gothique. Besançon : Presses Universitaires de Franche-Comté.
Hobsbawm, E. (1983). Introduction: Inventing traditions. In E. Hobsbawm & T. Ranger (Eds), The invention of tradition (pp. 1–14). Cambridge: Cambridge University Press.
Lassus, J.-B.-A., Viollet-le-Duc, E.-E. (1843). Projet de restauration de Notre-Dame de Paris : rapport adressé à M. le Ministre de la Justice et des Cultes... Paris:  impr. de Mme de Lacomb. Acedido em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k104823k
MacCannell, D. (1976). The tourist. A new theory of the leisure class. Berkeley: University of California Press.
Ruskin, J. (1849). The seven lamps of architecture. London: Smith, Elder.
Silverman, H. (2015). Heritage and authenticity. In E. Waterton & S. Watson, The Palgrave handbook of contemporary heritage research (pp. 69-88). Basingstoke, Hampshire; New York, NY: Palgrave Macmillan.
Smith, L. (2006). Uses of heritage. London; New York, NY: Routledge.
Tabet, J. (2018). Reconstruire à l’âge de la globalisation. Patrimoine Mondial, (86), 8-14. Acedido em http://whc.unesco.org/fr/revue/86/

Outras fontes consultadas:
“Une cathédrale d’art et d’histoire”. In Notre-Dame de Paris (sítio eletrónico oficial). Acedido em http://www.notredamedeparis.fr/la-cathedrale/ 
“Paris, Cathédrale Notre-Dame”. In Mapping Gothic France. Acedido em http://mappinggothic.org/building/1164

Cite this article as: Roque, Maria Isabel, “Notre-Dame de Paris no rescaldo das chamas: da história à reconstrução,” in a.muse.arte , 2019/04/18, https://amusearte.hypotheses.org/3729.

Fonte: Notre-Dame de Paris no rescaldo das chamas: da história à reconstrução

Back To Top