O tapete no centro de Arraiolos

Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos
Praça do Município 19
Arraiolos
Arraiolos deu o nome aos tapetes e é pelos tapetes que a vila de Arraiolos é conhecida. Os tapetes são bordados a pura lã de ovelha sobre uma base de estopa. Os fios tingidos fazem um ponto cruzado: um meio ponto oblíquo; o segundo, cruzando obliquamente sobre o primeiro; um terceiro passa por cima com o dobro do tamanho, abrindo o ponto seguinte. Primeiro faz-se o desenho, depois preenche-se o fundo.
Rotunda Norte
Arraiolos
Foto: MIR, 2019
Tudo, na vila, remete para os tapetes e o ponto bordado. À entrada da vila, pela rotunda norte, está desde 2017, uma instalação urbanística que combina, a larga escala, uma cadeira pintada alentejana com elementos relacionados com os tapetes – novelo de lã, tesoura, agulha, dedal, a palavra “Arraiolos” bordada –, enquanto no perímetro corre a frase “Pontos que cruzam a nossa história”. Arraiolos tem um castelo, mandado edificar pelo rei D. Dinis no início do século XIV, no local onde existia um castro proto-histórico e onde D. Afonso II também já o determinara, com uma cerca de traçado circular, torre de menagem e torreões de secção quadrada e em cujo recinto se encontra a igreja do Salvador; tem conventos, como o de Nossa Senhora da Assunção, conhecido como convento dos Lóios, fundado no século XVI e agora transformado em pousada, em cuja igreja há painéis de azulejo atribuídos a Gabriel del Barco; tem um pelourinho seiscentista, que conserva os ferros e argolas de sujeição; tem um coreto; tem a fonte dos almocreves.

Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos (CITA)
Arraiolos
Foto: MIR, 2019
Arraiolos tem, sobretudo, o Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos (CITA), museu de tutela municipal inaugurado em 2013 e instalado no antigo Hospital do Espírito Santo, de fundação quatrocentista e cuja memória se mantém no portal gótico-manuelino rasgado num dos extremos do piso térreo. O projeto de remodelação arquitetónica, adaptando o espaço à função museológica foi assinado por Diogo Burnay e Cristina Veríssimo. O historiador Rui Miguel Lobo, técnico superior municipal e autor da monografia Origens e influências decorativas do tapete de Arraiolos, publicada pela Câmara Municipal de Arraiolos em 2015, é o responsável técnico do CITA.
A missão do CITA é “promover o estudo e a divulgação do Tapete de Arraiolos, assim como a sua conservação, proteção, valorização e reconhecimento enquanto património histórico, artístico e etnográfico, tanto na sua vertente material como imaterial” (Câmara Municipal de Arraiolos, 2017), apresentando (mais do que interpretando) a história, as técnicas, os materiais e a evolução decorativa do tapete.

Antecedentes: complexo tintureiro medieval
Arraiolos, CITA
Foto: DMG
Um dos elementos mais relevantes neste percurso é a fotografia do complexo tintureiro instalado na praça do Município, junto ao museu. Durante a reforma urbanística da praça e adjacentes, em 2003, foi descoberto um conjunto de 95 fossas escavadas no substrato geológico que estudos posteriores comprovaram tratar-se de um complexo de tinturaria de grandes dimensões; posteriormente, entre 2011 e 2012, no decurso dos trabalhos de adaptação do hospital para a instalação do CITA, foram descobertas mais 38 fossas sob os alicerces do edifício, confirmando a referência à existência de fossas nas valas de fundação dos alicerces durante a construção da capela e que, por conseguinte, teriam sido utilizadas numa época anterior à sua construção. A escavação arqueológica das fossas permitiu ainda constatar um momento de ocupação que remonta à Idade do Bronze Pleno, identificar a existência de um cemitério do século XVIII no espaço confinado ao quintal do hospital e confirmar a cronologia de construção do edifício nos inícios do século XVI.

Capela do antigo hospital
Arraiolos, CITA
Foto: CITA, s.d.
Na capela foram, também, postos a descoberto painéis de frescos e arranques de abóbada, os quais foram restaurados e integrados no projeto de musealização. Também as fossas foram musealizadas, cobertas por um piso de vidro que permite observá-las à transparência, constituindo um elemento importante no processo de produção do tapete de Arraiolos.
Este complexo tintureiro, ativo entre os séculos XIII e XV, com características árabes e, portanto, provavelmente idêntico aos existentes nas tanarias de Fez, é anterior à produção de tapete de Arraiolos, mas poderá ter contribuído para o seu aparecimento neste local. A mais antiga referência documental ao tapete de Arraiolos data de 1598, mas os exemplares mais antigos conhecidos são do século XVI. Neste hiato de tempo, é possível que após o édito real de D. Manuel I (liv. II, tít. XLI, fl. LXIr-LXIv), de 1496, que promulgava a expulsão de judeus e muçulmanos, tapeteiros muçulmanos provenientes de Lisboa se tenham fixado em Arraiolos, atraídos pela notícia da indústria aqui existente.

História do tapete de Arraiolos
Arraiolos, CITA
Foto: Revista Sollicitare (24)
A história é evocada através da coleção de tapetes que documentam as suas várias fases: o orientalismo, a transição, a arte popular e o ressurgimento. Os tapetes expostos são provenientes da coleção da Câmara Municipal integrada no CITA, obtidos através de compra, doações, encomendas de réplicas e depósitos de longa duração feitos por entidades particulares, instituições locais museus, como o Museu Nacional de Arte Antiga, o Museu Nacional Machado de Castro, o Museu de Évora e a Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça.

Tear e fotografias etnográficas do ciclo do linho (fotos de Benjamim Enes Pereira)
Arraiolos, CITA
Foto: DMG

Corantes usados no tingimento da lã
Arraiolos, CITA
Foto: DMG
Os primeiros tapetes eram bordados em telas de linho, com os elementos decorativos contornados a ponto pé de flor, sendo o ponto de arraiolos utilizado no preenchimento e no fundo. O uso do linho justifica a presença das reproduções de fotografias etnográficas da preparação, fiação e tecelagem do linho. No entanto, a legenda apenas informa acerca da obra de onde foram tiradas, sem referir o autor da fotografia, nem a identificação do sujeito fotografado, nem o local e da data em que a imagem foi captada, o que, além de denunciar falta de rigor na identificação da fonte, retira valor documental à representação por não se lhe referir os contextos de local e tempo. O cromatismo desses primeiros tapetes, era alegre e vibrante nos contrastes entre azuis fortes, vermelhos garridos e laranjas quentes, cujas tonalidades se obtinham a partir de corantes naturais como os lírios tintureiros, o trovisco, o pau campestre, o pau-brasil, o anil, a garança e a cochinilha.
A influência orientalizante traduz-se na introdução de motivos persas, caucasianos e turcos a que se juntam ornamentos manuelinos como rosetas, nós estilizados e cordas. Ainda no século XVII, o contorno passou a ser feito com o ponto de arraiolos. Os tapetes passam a ser rematados por franjas feitas em pequenos teares. Ao longo do século XVIII, a execução dos tapetes torna-se numa manufatura artesanal de grande importância para a economia doméstica, enquanto os elementos orientais tendem a desaparecer, sendo substituídos por referências vernáculas, da fauna e da flora e, já em finais do século, por motivos florais. Depois de um período de decadência que se prolongou ao longo do século XIX, o tapete de Arraiolos ressurgiu a partir de inícios do século XX. A recuperação dos motivos a partir de exemplares antigos, gastos pelo tempo e de cores desbotadas pela luz, determinou o uso de tonalidades esbatidas sobre fundo branco, ao mesmo tempo que se fixava o uso da serrapilheira como suporte e da técnica do ponto cruzado sempre na mesma direção, tornando mais rápida a execução.

História do tapete
Arraiolos, CITA
Foto: DMG
No entanto, a história do tapete é contada de forma cronológica, descritiva, baseada na exposição cronológica dos tapetes, com legendas sumárias, meramente identificativas, e textos de apoio descritivos, seguindo modelos museográficos convencionais que não justificam o título de centro interpretativo.

Manufatura do tapete
Arraiolos, CITA
Foto: DMG

Mesa com o desenho do tapete; ao fundo, o ciclo da lã
Arraiolos, CITA
Foto: DMG
A ambição de elucidar o processo de manufatura dos tapetes regista-se, de alguma forma, na sala principal e nuclear da exposição. São referidos, através de imagens – novamente, sem informações de contexto – utensílios e objetos relacionados, capazes de despoletar analogias, as tarefas de pastorear, tosquiar e carmear, cardar, fiar, dobar e tingir a lã. Em sequência, é descrito o processo de execução do tapete: a tecelagem do suporte e da franja, cujos teares se encontram expostos; a passagem do desenho, o bordado, a aplicação da franja.

Bordado e aplicação da franja; em primeiro plano, tear da franja
Arraiolos, CITA
Foto: DMG
No meio das representações do tapete, surge a “Coleção Subtenente Piteira” sem que seja enunciada qualquer ligação com a exposição nuclear ou explicada a sua presença no percurso expositivo.

Coleção Subtenente Piteira
Arraiolos, CITA
Foto: DMG
A museografia segue um modelo linear e sistemático, sublinhando a função-signo dos objetos. O objeto é o documento da atividade apresentada e esta relação é validada pela presença dos elementos gráficos em que eles próprios, enquanto instrumentos de uso, são apresentados na função. A informação, ao longo de todo o percurso, é denotativa e homogénea, geralmente incompleta e sem ultrapassar os limites do conhecimento básico, ou comum, sem analisar, nem interpretar ou interpelar o visitante. Cada vez mais, a museologia sugere metodologias centradas no visitante e na sua ação participativa na construção do discurso museológico. Em particular numa instituição museológica que se arroga da condição de centro interpretativo, a museologia dia ser construtivista que, de resto, já nem é um conceito recente:
By considering both the epistemological basis for our organisation of exhibitions and the psychological basis for our theory of learning, we can develop museums that can respond to the dispositions of our visitors and maximise the potential for learning. The constructivist museum acknowledges that knowledge is created in the mind of the learner using personal learning methods. It allows us to accommodate all ages of learning. (Hein, 1999, p. 79)
Não é o caso deste museu, fisicamente pouco acolhedor, num ambiente exaustivamente minimalista, branco e marmóreo, que se torna inóspito e onde a museografia é incipiente para contextualizar os objetos, criar conexões e interpelar o visitante-recetor, levando-o o compreender o património exposto para lá da sua materialidade e dos dados relativos à sua história. Tudo isso, que seria expetável num centro interpretativo, foi substituído por um modelo meramente expositivo, com opções que, sob a capa de uma grafia atualizada, são simplistas e obsoletas, nomeadamente, no que se refere à fraca presença de dispositivos eletrónicos e onde o acesso é limitado a ficheiros de imagem. Não há estratégias museográficas que impliquem o visitante e a sua ação na pesquisa acerca do sentido da evolução histórica do tapete e da forma como esta reflete as circunstâncias sociais, económicas e culturais da comunidade e do lugar. Tal como não há mediação que apresente e analise o significado das componentes intangíveis do tapete.
Se o CITA pode envolver os residentes de forma mais direta, através das suas próprias memórias e experiências, traz muito pouco a visitantes extrínsecos a esta realidade, para os quais esta dificilmente será uma experiência imersiva.
Em certa medida, o CITA reflete a artificialização da vila de Arraiolos em torno do tapete que lhe garante a fama e a promoção. O tapete torna-se o fator determinante para a prossecução de políticas que, a par de iniciativas individuais e coletivas, procuram atrair visitantes, assumindo o turismo como fator essencial para o desenvolvimento socioeconómico do município. As infraestruturas e os empreendimentos que têm vindo a ser instalados com o duplo propósito de captar turismo e corresponder à sua procura incorporam o tapete, os materiais, os processos ou os seus motivos e, por extensão, o artesanato e a gastronomia local como imagem de marca. Ao percorrer as ruas de Arraiolos é inevitável a perceção de que o espaço começa a ser apropriado pelo turismo, direcionando as atividades para atender quem vem de fora, alterando a configuração da economia local, centrada no consumo de bens e serviços, como é próprio do fenómeno de turistificação.
O fenómeno de regeneração das grandes cidades e, mais recentemente, das áreas suburbanas degradadas através do desenvolvimento do turismo tende a ser replicado em espaços urbanos de menor dimensão, mas o fenómeno de turistificação tem impactos sociais e económicos (Sequera, & Nofre, 2018). É igualmente recorrente a exploração do património local para a valorização do espaço urbano com fins turísticos (Lees, Shin, & López-Morales, 2015). O risco é que, neste processo, se perca a ligação à origem, ao tapete que dá o mote à vila de Arraiolos, substituindo-o pela sua representação.
Referências bibliográficas:
Hein, G. E. (1999). The constructivist Museum. In E. Hooper Greenhill (ed. lit.), The educational role of the museum (2ª ed., pp. 73-79). New York: Routledge.
Lees, L., Shin, H.B., & López-Morales, E. (Eds. lit.) (2015). Global gentrifications: Uneven development and displacement. Bristol: Policy Press
Portugal. Rei, 1495-1521 (Manuel I). (1539). O primeiro [-quinto] liuro das ordenações (v. 1). Seuilla: em casa de Iua[n] cro[m]berger; [Lisboa]: Luiz Rodriguez. Disponível em http://purl.pt/24071
Sequera, J., & Nofre, J. (2018). Shaken, not stirred: New debates on touristification and the limits of gentrification. City: Analysis of urban trends, culture, theory, policy, action, 22(5-6), 843-855. doi: 10.1080/13604813.2018.1548819