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Quando não há sociedade, há solidão

Publicado em: Quando não há sociedade, há solidão

 

Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça

Chico Science e Nação Zumbi

 

Naturalmente, quando os sinais de perigo se multiplicam, confundem nossa sensibilidade, dificultando acesso a uma saída que seja viável, e talvez nos aprisionemos no medo. A ausência de reação então se confunde com o desejo simples mas fundamental de sobreviver – quem sabe me torno invisível se fechar os olhos?, pensa a criança em nós que surge em momentos assim. Parte essencial da vida em sociedade comum é justamente ter outras pessoas que me auxiliem a amenizar os perigos, a acessar o que necessito, para que a ilusão de invisibilidade não deixe crescer uma experiência da indiferença, para que o meu bem-estar integre o bem-estar da totalidade e vice-versa. Quando isso se quebra e ainda se crê em paz – lembro Espinosa –, não podemos dizer que há sociedade comum, e sim solidão; nela, o durar da vida pode se confundir com a mera resistência biológica, a ausência concreta – mais que física – do outro exila toda segurança e felicidade a uma terra que pode se perder do próprio horizonte do desejo.

Não é preciso ir aos perigos mais “naturais” – como as intempéries e as bestas selvagens – para que a experiência da indiferença seja a reposição momento a momento de sinais de risco e de perigos efetivos na vida dos indivíduos. O mundo do lucro reinventa perigos maiores, e a fome, em aparência um mal natural, é na verdade uma “calamidade social” – lembro Josué de Castro. Onde quer que o capitalismo tenha se imposto no mundo, e o Brasil se destaca nisso, a fome é uma realidade e um perigo iminente para a vida (aqui, pelo menos 10,3 milhões de pessoas vivem em lares sem acesso regular – com qualidade e quantidade seguras – à alimentação básica, segundo dados divulgados mês passado, setembro; e destaco o viverem em lares porque a pesquisa não conta pessoas em situação de rua).

Quando a trupe do jornalismo de ofício acrescenta a esses dados, colhidos entre 2017 e 2018 pelo IBGE, a atual configuração de pandemia, costuma afirmar que se multiplicam – ou se agravam – os sinais da crise econômica de uma época anterior. Perigos se multiplicaram e se agravaram, são mais visíveis e até mais debatidos. Mas, como tudo que se pretende muito econômico, nada de palpável se dá à experiência, toda solução parece incrementar a solidão e distanciar a solidariedade da vida comum, e o desejo parece paralisar na mais vulgar preservação da existência individual.

E por mais que algumas dessas mensagens adotem táticas de dar vida a quem morre, salientando que números de estatística são mais que isso, são pessoas que desaparecem e empobrecem o mundo, não conseguem esconder a monotonia das preocupações econômicas que realmente seriam as que podem dar conta dos males da população – não a revolta, mas a permanência da submissão; não a comunhão e a solidariedade, mas interesses egoístas que apenas sobrevivem impondo a solidão e a competição com quem quer que possa aspirar aos mesmos meios de sobrevida. Como esperado por essa tática moralista – hipócrita – de “comunicação”, os sinais se multiplicam, confundem-nos, gestos apontam dedos de acusação para indivíduos sem consciência que lotam praias e bares – sem que nada indique que a morte não se limita à circulação sanguínea, que ela é empurrada em vida pela solidão imposta que nem nos permite – por necessidade ou outras carências – digerir as razões de permanecer em isolamento social o mais possível.

Essa solidão nos faz procurar outras bocas para respirar, outros risos para rir, multidões para se aglomerar – não porque seja algo naturalmente irresistível, mas porque em muitos casos essa é a única conformação concreta de outras individualidades, é a única resposta imediata à sensação imobilizadora da solidão, a qual existe, assim como a fome de milhões de pessoas, desde muito antes da pandemia. Apontar dedos é fácil porque personaliza problemas e porque nos faz esquecer que o que chamamos de sociedade é um fracasso estrutural que se desenvolve quando isola e aprisiona todo sentido determinante de solidariedade.

A pandemia multiplica sinais de crises, aumenta confusões morais – mas, ética e politicamente, os sinais remetem a fatos que já conhecemos ou deveríamos conhecer, como realidade numa sorte de “mundo das coisas”, a que podemos acessar de diversas maneiras, mas não por sinais “econômicos”. Com todas as idas e voltas que deram os números desde o livro Geografia da fome (1946) até aqui, vale ruminar com Josué, ao redor do que, em nossa cultura, sobre o tema da fome, dificulta examiná-lo mais a fundo, não só em seu aspecto estrito de sensação — impulso e instinto que tem servido de força motriz a evolução da humanidade — como em seu aspecto mais amplo da calamidade universal. Sob este último aspecto, se fizermos um estudo comparativo da fome com as outras grandes calamidades que costumam assolar o mundo — a guerra e as pestes ou epidemias — verificaremos, mais uma vez, que a menos debatida, a menos conhecida em suas causas e efeitos, é exatamente a fome. Para cada mil publicações referentes aos problemas da guerra, pode-se contar com um trabalho acerca da fome. No entanto, os estragos produzidos por esta última calamidade são maiores do que os das guerras e das epidemias juntas, conforme é possível apurar, mesmo contando com as poucas referências existentes sobre o assunto. E há mais, a favor deste triste primado da fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatória do terreno, quase que obrigatória, para a eclosão das grandes epidemias.

Espinosa, lembrado por mim anteriormente, sabia que “ninguém pode desejar ser feliz, agir bem e viver bem se, simultaneamente, não deseja ser, agir e viver, isto é, existir em ato”. A vida é como que um afeto primário que permite tudo o mais ter sentido. Que sentido teria, para a sociedade comum, reduzir milhões de pessoas ao bruto desejo da simples conservação? É possível dizer que há sociedade comum onde há a fome? Se indigna a indiferença de muitas pessoas aos riscos de morte trazidos pela proliferação da Covid-19, não nos deveria indignar – todos os dias – a certeza de que a sociedade como a conhecemos prolifera a fome e a morte?

Os jogos da necropolítica não dão sentido à dor de quem perde alguém pela violência da indiferença – apenas a revolta declarada e em ação chega perto de fazê-lo, e por isso tantos a temem; antes esvaziam a dor de sentido comum, e até as belezas residuais de moralidades propensas à quietude tendem a gangrenar e são expelidas, restando ódio individualista e uma cegueira que quer apagar o desespero à unha. A necropolítica – pois só assim a morte pode ser bem gerida – precisa esmagar toda beleza e ilhar as dores para que a morte e a fome sejam confundidas em seus sinais (e não nos ocupemos de fato nem de uma nem de outra), em prol do esvaziamento das revoltas, até que toda solidão seja vista como feia e todo isolamento necessário, como em caso atual, seja percebido como um afundar na falta de sentido que é a vida vazia – sem os subterfúgios que cumprem o papel de dar rumo à inércia cotidiana.

 

 

 


Créditos na imagem: Passo a passo, Lesley Oldaker, óleo sobre papel, 2018.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Daniel Santos da Silva

Nascido em 1982, professor de filosofia, pesquisador da Modernidade e de política. Nos últimos anos, os trabalhos têm se envolvido com um arco maior de disciplinas, mas que geralmente culminam em algum aspecto das políticas.

Fonte: Quando não há sociedade, há solidão
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