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Vida depois da Morte ou desce 11 doses dessa Mineirinha

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O texto é uma tradução (do português para o português, sim…) de Mineirinho, um conto de Clarice Lispector. Na fotografia, ao fim da escrita, estão Clarice e Carolina Maria de Jesus, as duas maiores escritoras – sobre o gueto – desde Franz Kafka. O texto é o posfácio da minha tese de doutorado, A sociedade sagrada das polacas: uma tradução da Torá pelas donas de casa/prostitutas judias, defendida em 2018 no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A sua publicação agora se deve, em parte, ao fato da Polícia Civil ter alegado a perda das imagens dos assassinos de Marielle Franco no dia do crime.

 


 

 

“Fui no depósito receber o dinheiro do papel. 55 cruzeiros. Retornei depressa, comprei leite e pão. Preparei Toddy para as crianças, arrumei os leitos, pus feijão no fogo, varri o barraco. Chamei o Senhor Ireno Venâncio da Silva pra fazer um balanço para os meninos. Para ver se eles permanece no quintal para os visinhos não brigar com eles. Dei-lhe dezesseis cruzeiros. Enquanto ele fazia o balanço, eu fui ensaboar as roupas. Quando retornei, o Senhor Ireno estava terminando o balanço. Fiz alguns reparos e ele terminou. Os meninos deu valor ao balanço só na hora. Todos queriam balançar ao mesmo tempo!”

 

– Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo[1]

 

 

É, suponho que é em mim, como uma das representantes do nós, que devo procurar porque está doendo tanto a morte de Marielle. E porque é que mais me adianta contar e recontar uma história de sobrevivência do que o número dos tiros que estouraram a sua cabeça. Perguntei a minha imagem branca no espelho o que ela achava da morte de uma mulher preta. Vi em meu rosto a pequena convulsão de um conflito, mal-estar de não entender o que se sente ser mulher-inteira, o de precisar trair sensações que me atravessam a cabeça quando preciso colocar os pés no Planeta Fome. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividida na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Marielle, uma das representantes do nós, foi morta por uma mão de força branca, bélica e masculina que já matou demais. Nós queremos os meninos negros vivos e as mulheres-mães parindo em paz muitos filhos. O meu sorriso de mulher estéril se secou ontem ainda mais um pouco, vendo-me em um mundo que é palco de uma injustiça que todos os dias bebe muito sangue. Não tenho mais raiva de mim, ouço uma coisa que se mexe na minha alma, não respondo a nada com frieza: O que eu sinto serve, sim, pra se dizer. Quem não sabe que os meninos pretos mortos e jogados nas valas da nossa imundície cotidiana não são os verdadeiros criminosos? Ver uma Cinelândia inteira cantando a Internacional me faz pensar que Marielle e todos aqueles por quem ela morreu ontem se vão embora em uma chuva que só cai pra levar embora os espíritos mais vivos do hoje. A mulher branca no espelho me responde que muita gente matou Marielle. Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpos e vidas que importam, é a de que NÃO MATARÁS. Sabemos que ela não é garantia de nada: assim nos matam lésbicas, porque queremos amar outras mulheres, e assim ainda não nos conseguem derrubar de todo, porque uma mulher morta é uma luz pra todas nós. Esta é a lei. Mas há uma coisa que, se me faz morrer com ela no primeiro e no segundo tiro, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada e no quinto me rebatiza… O último tiro me reinventa – porque eu sou a outra. Porque eu quero ser a outra. Essa justiça que estupra o meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso dormimos depois de muita bebida, drogas ilícitas e um ou outro medicamento de tarja preta. Nós, as que lutamos todos os dias pra despertar… Para que o meu coração funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu desperte todos os dias, que eu organize a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for toda coração, o meu cérebro estoura. Se eu não for toda coração, o meu corpo padece. Eu não me deixo esquecer que embaixo do corpo tombado de cada uma de nós está uma semente, a vida que promete a nossa comunhão com a terra. Enquanto dormimos bêbadas, drogadas e medicadas sabemos também que todo sono imposto guarda a promessa de um despertar permanente. Até que quatro ou cinco tiros levam Marielle e, com O Horror, constatamos que é cedo demais – nem quarenta anos – porque à mulher acuada a morte não chega tarde, que a ela não nos matem dentro de nós. Porque sei que Marielle é o nosso acerto. E de uma vida inteira, pelas tempestades de Oyá, o que se salva às vezes é apenas o acerto, e eu sei que nos salvaremos enquanto o nosso acerto nos for precioso. Meu acerto é meu espelho, onde eu vejo que como mulheres negras redesenham o meu rosto em quase e completo apagamento. A vida acerta se abrindo na nossa carne e espantando as sombras, e vemos a matéria da vida, placenta e sangue, e lama viva da qual somos feitas. Em um menino morto jogado em uma vala se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele ainda conseguiu sobreviver tanto tempo a tantos tiros que atravessam o meu sono? A violência é assustadora. A violência contra o inocente – como consequência de uma vida na qual foi abandonado pelo pai – e da qual uma mãe-com-a-força-dos-chifres-de-uma-búfala tomou conta e garantiu. Tudo o que foi violência contra a outra é onde os nossos olhares se encontram e assim ninguém corre mais o risco de não se entender nesse amor-de-irmã-botão-de-flor. A casa desabou. A violência rebentada no peito dos meninos é um buraco feito por mão-de-homem, a mão de um exército da desesperança, ceifando a cabeça dos que vivem nos guetos do Rio de Janeiro, não pode aplacar nada que não seja uma mentira fantasiada de justiça suficiente apenas pra quem se agrada de que o mal seja banal. Só depois que Luísa Mahin cai, sem que o assassino mostre uma face que não seja a da covardia, sem coragem e sem escrúpulo, vemos que não podemos nos dar ao luxo de cair todas nós: também eu. Eu não quero nenhuma casa que não seja revolução. Quero uma justiça que tivesse dado a chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em mim – essa coisa que move montanhas e é a mesma que me faz aprender a gostar “feito doida” de uma mulher que sou eu, e a mesma que me leva a passar pelo umbral desse inferno onde o olho-de-um-macho dilacera a minha nudez; é uma coisa que em mim é tão vermelha e límpida como uma flor de pomba-gira, essas pétalas que se abrem são uma manifestação de vida que se for pisada se transforma em algo ameaçador – em humanidade pisada; essa coisa, que em nós se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água envenenada a um soldado, não porque eu tenha veneno em mim, mas porque, também eu, sei o que é morte; e também eu, que morri tantas vezes, experimentei a vertigem de viver. A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia e mágica, sermos o nosso divino; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos que em nós ele É-Preta[2], aquela-mulher que criou o homem-branco do seu plasma antes dele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que ela seja a minha Mãe, mais ainda quando sei que a outra mulher é a única que pode reconfigurar o meu rosto espancado. E continuo a morar na estrada. Esse chão, sem porta ou proteção, onde a ventania serve como uma imagem do que fará voar pelos ares qualquer coisa maléfica ainda se guardando em anacrônicos quartéis. Mas eu estou de pé, e ela sopra em mim, enquanto eu tiver apenas a audição suficiente pra escutar a voz de todas as mortas que lutam ombro a ombro com todas nós. Porque quem ama os mortos tem o poder de desorganizar a matança. Há uma sede de ser gente em nós que desorganizaria tudo – uma coisa que entende amor. Essa coisa que não fica muda diante de corpo de mulher sem roupa e sem sapatos deitado no chão, e para tê-los ela trabalhou e trabalhou; e fica mais grossa ainda a nossa voz quando acendemos uma vela diante de um São Jorge trabalhador que não precisa do cordão de ouro ou dos diamantes que extraiu da terra com as próprias mãos para que algum pretenso Senhor prosperasse. Essa alguma coisa muito louca em mim fica ainda mais desarranjada diante de uma mulher assassinada. Essa alguma coisa é o que não quero que assassinem em mim? Não quero… Feito uma profetisa, eu conheço as minhas histórias, a história de cada uma das páginas-pétalas dessa flor vermelha e perigosa. Mas só feito uma lunática, e jamais como mulher-desejável, eu me conheço. É como uma estrangeira que entro pela vida da qual sei que só saio pelas portas abertas na terra, e como doida compreendo o que é perigoso compreender, e só como doida eu sinto o amor profundo pela outra, aquele que se confirma quando vejo que o nosso perfume se disseminará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então pela coragem com a qual nos levantamos contra os miseráveis que querem nos destruir. Se eu não fosse doida, eu não seria tantas mulheres dentro de mim, e esta cisão do meu eu não seria a minha honorabilidade. Até que venha uma justiça ainda mais ensandecida do que todas nós. Uma que levasse em conta que lutamos contra esse homem-arma que em tudo já falhou, ele já é tão perverso que a sua mira desfoca qualquer vestígio da sua humanidade. Uma justiça prévia que se plantasse como um jardim lembrando a todos de que a nossa grande luta mesmo é a da germinação, e que um homem que tudo ceifa é porque teve muito desaprendido sobre amar. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que se visse em todas nós, lama viva, somos escuras, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode perfurar as nossas asas: porque ninguém pode cometer livre e provadamente um crime-execução. Uma justiça que não se esqueça de que nós somos perigosas, e que na hora em que um diabo-mandado mata, ele não pode mais se proteger de todas ou querer eliminar a nossa existência, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado por uma cadeia hereditária de odiosos. Na hora de matar uma mulher – nesse instante está sendo morta a alma do assassino. Não, não é que eu queira uma praga, nem que eu saiba endereçar a alguém um feitiço que me faça dormir tranquila, mistura de pesar e pipoca-ferida, da minha bestialidade vaga, nós que nos refugiamos nas certezas que estão plantadas no chão. O que eu quero é muito mais áspero e difícil: quero renascer do mesmo buraco que me prometeram como sepultura.

Clarice Lispector e Carolina de Jesus.[3]

 

 


NOTAS

[1] MARIA DE JESUS, Carolina. Quarto de despejo. Disponível em <https://historiaafrosuzano.files.wordpress.com/2016/10/1960-quarto-de-despejo-p1.pdf>. Acessado em 21/04/2018.

[2] “A noite odara, É preta; tulipa mais rara, é preta; é vida que desabrocha, em cores e facetas; nossa união, é preta!” Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=zJ0LxYjasx8>. Acessado em 15/10/2019.

[3] Disponível em <https://revistacult.uol.com.br/home/escritor-e-acusado-de-racismo-por-trecho-em-biografia-de-clarice-lispector/>. Acessado em 15/10/2019.

 

 

 


Créditos na Imagem: Marielle Franco. Foto: Mídia Ninja.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Fernanda Miguens

Fernanda Miguens

Fernanda Miguens é tradutora. Doutora em Filosofia pela UFRJ (2018) com tese sobre a tradução dos dogmas judaicos do leste-europeu para a realidade carioca, no século XIX, pelas mulheres judias apelidadas de polacas. Mestra em Filosofia pela UFRJ (2014), com dissertação sobre algumas das traduções/versões do que chamamos de “filosofia oriental” para o Ocidente. A tradução de Corpos em aliança e a política das ruas – notas sobre uma teoria performativa da assembleia, da filósofa Judith Butler, para a Editora Record e A metade que nunca foi contada – a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano, do historiador Edward E. Baptist, para a editora Paz & Terra, são os seus trabalhos mais recentes.

Fonte: Vida depois da Morte ou desce 11 doses dessa Mineirinha

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