skip to Main Content

Desenho subjacente e imanente | a.muse.arte

“Drawing Room”
Lisboa, Sociedade Nacional de Belas Artes, 9 – 13 out. 2019

Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

No início era o desenho. É o desenho que nos documenta e nos transmite a vida, o pensamento, as emoções do homem desde os tempos anteriores à história. O desenho sempre esteve lá, como impulso e como expressão, nas pinturas feitas no interior das grutas, nos traços gravados nas rochas, ou subjacente debaixo de camadas de tinta como suporte e guia da composição.

Durante muito tempo, a arte coincidia com a técnica (technê), ou habilidade. Xenofonte, nas obras Memorabilia e Oeconomicus, onde relata as conversas tidas com Sócrates, o conhecimento ligado ao saber fazer corresponde à technê, que, nos Diálogos de Platão surge associada aos ofícios, como a pintura e a escultura. Para Sócrates, a technê corresponde às manualidades artesanais e é transmissível e produtora, tornando-se um valor pragmático que Platão confirma como arte/ofício, definindo a técnica como um conjunto de procedimentos que visam produzir um objeto ou um resultado útil, mas também à imitação de uma ordem divina imanente ao cosmos (Balansard, 2001). Na Idade Média, estes conceitos formalizam-se na dicotomia entre artes servis (produtoras) e as artes liberais (criadoras) ligadas ao pensamento, ao conhecimento e às competências científicas. Quando, no Renascimento, esta dicotomia se esbate e as artes plásticas ou das manualidades adquirem um novo prestígio, o desenho autonomiza-se enquanto expressão artística enquanto se valoriza como elemento subjacente das restantes.  ”O desenho, a que por outro nome chamam debuxo, nele consiste e é a fonte e o corpo da pintura e da escultura e da arquitetura e de todo outro gênero de pintar e a raiz de todas as ciências.” (Holanda, 1955, p. 77).

Rui Serra e Ángela Sánchez
Arte Periférica – Galeria de arte
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Subitamente, no contexto das ruturas e dos conceptualismos da arte contemporânea, foi implicitamente retomada, mesmo pela academia e, sobretudo, pela crítica, a dicotomia entre artes manuais e as artes do pensamento, ou conceptuais, mesmo quando expressas através da visualidade.

Quando parecia que o primado da arte conceptual subjugava a arte plástica, impedindo-lhe a visibilidade e retirando-lhe o prestígio, eis que o desenho se torna protagonista.

Quando parecia que as galerias relegavam o desenho, a habilidade técnica subjacente à arte, eis que promovem uma feira em torno do desenho e que a transformam num projeto regular que já conta quatro edições em Madrid e vai na segunda em Portugal.

No sítio eletrónico oficial da iniciativa a Drawing Room Lisboa assume-se como “um projecto curatorial focado no desenho contemporâneo e no meio de papel” e pretende dar a conhecer “a riqueza e actual relevância da prática do desenho contemporâneo, incluindo uma nova geração de artistas que se apropriou do desenho como meio privilegiado e que encontra a inegável devoção pelo desenho dos grandes mestres”. A feira e a adesão que teve falam por si e provam o mérito de quem a organizou, mas também de quem a divulgou e promoveu. Destaca-se, por isso, a comunicação da Creative Industries Programmes e o trabalho de Sara Cavaco e Carmo Mendes.

As 25 galerias de 7 países (Portugal, Argentina, Colômbia, Espanha, Japão, Moçambique e Brasil) mostram os trabalhos de 70 artistas, a que se juntam dois projetos específicos dos Vicky Kylander e Albert Pinya. Em simultâneo, ocorrem o Foco Argentina, comissariado por Deborah Reda, e uma mostra da Coleção de Desenho Contemporâneo da Fundação PLMJ, comissariada por João Silvério. O Programa Paralelo incluiu um encontro profissional no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), no âmbito do Programa Europa – Convidados Institucionais, e uma mesa redonda sobre desenho e vanguarda histórica no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNAC), tendo como pano de fundo a exposição (com os desenhos) de Sarah Affonso.

Vicky Kylander
Projecto 1: Sound & Vision
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Ao lado dos artistas já confirmados, como Helena Almeida, Júlio Pomar, António Sena, Pedro Cabrita Reis, Lurdes Castro, Ana Jotta, Julião Sarmento, Cristina Lamas, mas que nos surpreendem através de perspetivas mais inesperadas ou esquecidas, há aqueles que temos vindo a identificar e a seguir, como Ana Romaozinho, AnaMary Bilbao, Joanna Latka, Luis Guzmán, Pedro Barateiro, Rui Serra, onde voltamos a descobrir as suas diferentes identidades e expressões, os diferentes registos e abordagens. Se, nestes (e em tantos mais…) há espaço para a descoberta, confirmando-lhes a “habilidade técnica” a par da criação, há outros, como Butcheca, Zé da Rocha, Matías Ercole, Paula Otegui e Irene González , que efetivamente descobrimos, entre a surpresa e o maravilhamento, entre visões veladas, paisagens imaginadas e fragmentos de corpos. Há, ainda um conceito alargado de desenho, mas onde este se distingue, como na pintura de Manuel Caeiro, ou no vídeo de Rui Toscano. E, depois, há tantos outros de que sentimos falta, que aqui deveriam estar presentes.

Júlio Pomar
Galeria Valbom
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Pedro Cabrita Reis
Galeria Miguel Nabinho
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Cristina Lamas
Galeria 111
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Joanna Latka
Galeria Monumental
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

AnaMary Bilbao
Uma Lulik
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Sérgio Fernandes e Pedro Tudela
Kubikgallery
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

José Loureiro
Fonseca Macedo – Arte Contemporânea
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Zé de Rocha
RV Cultura e Arte (Brasil)
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Luis Guzmán
Adrián Ibáñez Galería (Colômbia)
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Carlos Alarcón
Adrián Ibáñez Galería (Colômbia)
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Butcheca e Carmen Maria Muianga
Kulungwana (Moçambique)
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Irene González
Galería Silvestre (Espanha)
Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Paula Otegui
Pabellón 4 (Agentina)
Drawing Room Lisboa: Foco Argentina
Foto: MIR, 2019

Drawing Room Lisboa: Coleção de Desenho Contemporâneo da Fundação PLMJ
Foto: MIR, 2019

Rui Toscano
Drawing Room Lisboa: Coleção de Desenho Contemporâneo da Fundação PLMJ
Foto: MIR, 2019

Drawing room, o desenho é uma festa para o olhar, torna-se uma festa no pulsar do público, nas conversas entre protagonistas e visitantes, nas gerações que se cruzam, nas escolhas, nas contemplações, nos dedos que apontam e nos gestos que convocam. E é, sobretudo uma bonita festa a comprovar o desenho e a apontar para novos desígnios da arte, num apaixonante convívio entre representação e abstracionismo, entre plástica e conceito, entre habilidade e criatividade.

Drawing Room Lisboa
Foto: MIR, 2019

Referências bibliográficas:
Balansard, A. (2001). Technè dans les Dialogues de Platon: L’empreinte de la sophistique. Sankt Augustin: Academia.
Holanda, F. (1955). Diálogos de Roma: Da pintura antiga. Lisboa: Livraria Sá da Costa.


Fonte: Desenho subjacente e imanente | a.muse.arte

Back To Top