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Dia da espiga | a.muse.arte

“Como era dia da espiga, pelas veredas que as terras demarcavam, os grupos da gente operária com exércitos de pequenada, iam entre as searas, serpenteando com fatos de domingo, para colher o ramilhete de papoilas e espigas, que no dizer da lenda lhes traria ao ninho, felicidades e paz.” (Almeida, 1882, p. 74).

O Dia da Espiga ou Quinta-feira da Espiga coincide com a festa da Ascensão. Na tradição cristã, esta festa móvel celebra a elevação de Cristo aos céus, quarenta dias após a Ressurreição e marcando o fim da sua presença junto aos homens. Conforme o dito popular: “da Páscoa à Ascensão, quarenta dias vão “. A contagem dos dias após o Domingo de Páscoa implica que a festa calhe sempre à quinta-feira e, geralmente, no mês de maio, na décima-quarta semana da Páscoa (cfr. Atos 1, 3). Esta é uma festa dita ecuménica, no sentido em que é comemorada por todas as igrejas de matriz cristã. Não havendo registos anteriores ao século V, a Festa da Ascensão é mencionada por João Crisóstomo, Gregório de Níssa e Santo Agostinho, que afirma a sua origem apostólica e uma prática generalizada desde os tempos da Igreja primitiva. 

O dia d’a espiga
A. Rey Colaço, c. 1920 (?)

O calendário cristão recuperou e cristianizou as festas pagãs do Império Romano, comuns às culturas do Mediterrâneo e relacionadas com o ciclo natural das estações do ano e da faina agrícola, conferindo-lhes um novo cariz religioso. O Dia da Espiga, na quadragésima da celebração da Páscoa, coincide  com o renascimento da natureza pela Primavera, celebrando o eclodir da vida nos campos após o Inverno, e consiste num ritual propiciatório para boas colheitas. É este o aspeto que permanece na tradição popular. 

Na Grécia Clássica, esta era uma altura de grandes festejos em honra de Deméter (Ceres, na mitologia Romana), deusa da agricultura e das searas, e da sua filha Perséfone (ou Prosérpina), deusa do trigo, da germinação, dos rebentos e das folhas. Ganharam reputação as Festas Demétrias (sobretudo, na cidade de Elêusis, onde tomavam o nome de Grandes Eleusínias), celebrando o aparecimento primaveril de Perséfone que, após o cativeiro no sombrio submundo das trevas durante o Inverno, subia agora à terra germinante de vegetação propiciando as boas colheitas. 

Dia da Espiga: ramo novo
2019
Foto: MIR, 30 de maio de 2019

O Dia da Espiga era também dito o Dia da Hora, em referência ao meio, hora em que, segundo a crença “as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e as folhas se cruzam”. Esta crença é igualmente uma reminiscência de simbolismos ancestrais que configurava esta festa de particular sacralidade, sendo nalguns lugares considerado o santo mais dia do ano, e em que o trabalho ficava interdito. A única tarefa permitida à hora do meio-dia era a colheita das plantas para os ramos e outras ervas medicinais.

“No Sul do País, a data é conhecida pela designação de «Dia da Espiga»: as pessoas saem para os campos, para apanharem a «espiga», isto é, arranjarem um raminho, que enquadra fundamentalmente uma espiga de trigo e um ramo de oliveira, e que se compõe, além destas espécies, de espigas, a preceito, de outros cereais – centeio, cevada, aveia, etc. -, e também rosas, papoilas, malmequeres, margaridas, pampilhos, ou outras flores campestres, em número e combinações variáveis conforme as localidades, mas certas em relação a cada uma, que se pendura dentro de casa, na parede da cozinha ou da sala, e aí se conserva um ano, até ser substituído pela «espiga» do ano seguinte, e a que, colhida nesse dia, se associa a uma ideia expressa de virtude benfazeja.”(Oliveira, 1984, p. 113)

A simbologia das plantas confere-lhe atributos que perduram ao longo do ano, sendo o ramo tradicionalmente pendurado atrás da porta principal da casa, onde fica até ser substituído no ano seguinte por um novo ramo.

Dia da Espiga: ramo velho
2019
Foto: MIR, 30 de maio de 2019

As espigas, de trigo, centeio, aveia, ou qualquer outro cereal, devem ser em número ímpar e são a parte mais importante do ramo. Representam o pão, como a base do sustento da família, e a fecundidade. A papoila é a parte mais garrida do ramo, mas também a primeira a murchar e a desaparecer, representa o amor e a vida. O malmequer, com o branco da prata e o amarelo do ouro, simboliza a riqueza e os bens terrenos. O ramo de oliveira, sendo um símbolo da paz, é também o símbolo da luz, dado que dela se obtém o azeite que alumiava e, por extensão, alude à sabedoria divina. O alecrim, pelo seu cheiro forte e duradouro e pelas suas caraterísticas resistentes, significa a força e garante a saúde.  

Se hoje em dia, se perdeu o costume de ir ao campo apanhar as flores benfazejas, surgem nas cidades as vendedeiras com os ramos já feitos, prontos a ser pendurados dentro das nossas casas com a firme esperança de que nos tragam pão, dinheiro, amor e paz. 

Bibliografia: 
Almeida, F. (1882). A cidade do vício. Porto: Ernesto Chardron.
Oliveira, E. V. 1984. Festividades cíclicas em Portugal. Lisboa: Publicações Dom Quixote.


Fonte: Dia da espiga | a.muse.arte

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