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Em torno da definição de museu

O museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite. (ICOM, 2007)

Definir “o” museu parece redutor da pluralidade tipológica do museu. A função do artigo definido é a individualização do nome, de forma particular, precisa e objetiva. Neste caso, o artigo “o”, distingue o museu de outras instituições similares e subentende uma uniformização em função dos vários parâmetros incluídos na definição que constitui a sua marca identitária.

É uma “instituição permanente”.

“Permanência” (do lat. med. permanentia -ae, de permanens -entis, part. pres. de permanere, com o elemento de composição do verbo latino manere ‘ficar, morar’, associado ao prefixo per- ‘intensidade’ e o sufixo (ê)ncia‘ ‘ação ou resultado de ação’) significa um estado de continuidade, estabilidade ou imutabilidade.

Permanente é, por conseguinte, a qualidade daquilo que continua, sem ou com poucas alterações, por oposição à rutura. Por seu turno, “instituição (do lat. institutĭo -ōnis ‘disposição, arranjo’) já tem implícito o conceito de organização estável. Assim, a designação “instituição permanente” sublinha o caráter irrevogável e fixo do museu. Enquanto uma instituição patrimonial, vocacionada para a preservação e conservação dos espólios, este sentido de continuidade e, mesmo, de perenidade parece plenamente justificado. O caráter institucional e permanente confere aos museus um estatuto de autoridade que tende a justificar a imobilidade de programas fechados e de discursos monológicos. Abstraídos das mudanças sociais, das circunstâncias particulares do mundo contemporâneo, podem os museus continuar a seguir os modelos oitocentistas e eurocêntricos? Ou, pelo contrário, a estabilidade institucional do museu pode ser percecionada como um reduto apaziguador face à efemeridade do mundo que nos rodeia?

É uma “instituição […] sem fins lucrativos”.

Na realidade, os museus querem gerar receitas e grande parte das iniciativas que levam a cabo, a pretexto de captar novos públicos, tem subjacente a obtenção de lucro. O aumento exponencial do turismo e, em particular, do segmento do turismo cultural é visto mais como oportunidade do que como ameaça, mesmo quando se questiona se o museu consegue corresponder às expetativas de públicos cada vez mais diversificados. Assim, não seria mais honesto reconhecer que o museu quer e precisa de obter receitas, advertindo, porém, que a ação museológica não deve estar centrada na sua obtenção? Não deveria advertir-se sobretudo que as receitas obtidas devem ser exclusivamente aplicadas no museu (ou em instituições similares sob a mesma tutela financeira), sem servir outros interesses particulares dos seus profissionais, colaboradores, fornecedores, patrocinadores, ou quaisquer outros com ligação ao museu? Sendo que isto implica, igualmente, ações de consultadoria e outras relacionadas com o comércio de obras ou artefactos?

Está “ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento”.

O compromisso social é precisamente aquilo que distingue o museu do colecionismo e de outras práticas paramuseológicas. A fundação dos primeiros museus tinha como missão a disponibilização a toda a sociedade da fruição de bens que, até então, haviam sido exclusivos das classes privilegiadas. O museu tem, por conseguinte, uma responsabilidade social, a par da obrigação de preservação e conservação do património. Quando o museu se focaliza em cuidar dos seus espólios com o objetivo, justo e correto, de os transmitir às gerações do futuro, corre o risco de perder a ligação às gerações do presente. Estar “ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento” significa desenvolver práticas museológicas comprometidas com o desenvolvimento social. Foi nesse sentido que, em 1972, a reunião do ICOM em Santiago do Chile abordou os problemas dos meios rurais e urbanos e do desenvolvimento técnico-científico e da educação permanente, tendo os participantes considerado que “la prise de conscience de la part des musées, de la situation actuelle et des différentes solutions qu’on envisage pour améliorer, est une condition essentielle pour son intégration dans la vie de la société” (“Déclaration de Santiago”, 1972, 30 de maio). Embora a reunião se destinasse a refletir sobre o caso sul-americano, a declaração teve um impacto mais amplo, consolidando os conceitos de museu integral e de museu como ação que irão informar a Nova Museologia: “musée integral, c’est à dire prenant en compte la totalité des problèmes de la société […] musée comme action, c’est à dire comme instrument dynamique du changement social” (Varine, 2000, p. 182). Não significa isto que o museu sobreponha a ação social às ações de recolha e conservação, que constituem a vocação central do museu (Id., ibid.), mas que estas ações devem ser realizadas em função do desenvolvimento da sociedade.

É uma “instituição […] aberta ao público”.

A abertura do museu é uma condição intrínseca ao museu. Os primeiros museus enquanto disponibilizavam os seus acervos sublinhavam a sua acessibilidade a todos, mesmo quando estabeleciam grupos e condições de acesso, reservando determinados dias a artesãos e artistas que tinham no museu um espaço de educação informal, um lugar de inspiração e exercício de habilidades e competências. No entanto, o discurso museológico mantinha-se fechado, reservado a uma elite de especialistas. As mudanças entretanto ocorridas têm vindo a enfatizar o deslocamento do museu inicialmente centrado no objeto, para o museu focado na pluralidade dos seus públicos, requerendo um discurso aberto, com múltiplos níveis de informação segmentada, e permitindo diferentes modalidades de fruição, das mais intelectuais às mais emotivas e lúdicas. O conhecimento do museu, enquanto autoridade, deixa de ser impositivo, para ser percecionado como confiável e certificado, enquanto se valoriza as diferentes interações (cognitivas, experienciais e sociais) com os públicos. A premência de uma crescente abertura e do alargamento dos públicos-alvo em articulação com a promoção do museu como destino turístico obrigatório e enquanto fator de promoção pessoal provocaram inusitadas afluências ao seu espaço físico, com o efeito perverso de, sendo um lugar para todos, ter passado a ser um lugar para ninguém. Os museus superpovoados, aqueles que é obrigatório ver, são descritos como espaços confusos, barulhentos, cansativos, onde o benefício da visita se limita à satisfação do dever cumprido.

Mais do que aberto ao público, o museu deve ser inclusivo. Este conceito está subjacente à responsabilidade do museu, envolvendo a obrigação de assegurar condições de acessibilidade e inclusão, não só aos visitantes com deficiência ou necessidades especiais, mas também aos grupos e indivíduos habitualmente marginalizados ou privados de oportunidades de tomada de decisão. O museu inclusivo é aquele que aceita todos os visitantes, existentes e potenciais, com igual respeito, e fornecerá acesso apropriado à sua formação, nível de educação, habilidade e experiência de vida (cfr. O’Neill, 2002, p. 24).

É uma “instituição […] que adquire”.

“Adquirir” (do lat. adquirere, de adquaerere, composto pelo prefixo ad– ‘para, em direção a’ e o verbo quaerō ‘querer, procurar’), significa obter ou tornar-se proprietário de um bem.

Em português corrente, tornou-se sinónimo de comprar, pelo que o termo pode parecer redutor no âmbito da função museológica. Em contrapartida, “colecionar”, ou “coligir” (do lat. med. collectare, de col-lĭgo, com o elemento de composição do verbo latino ligare ‘juntar’, associado ao prefixo col-, ou conl- ‘companhia’), tem uma conotação mais ampla relacionada com a recolha de conjuntos de objetos. A criação de conjuntos de objetos tem subjacente o conceito de um princípio organizador coerente, mais apropriado neste contexto.

É uma “instituição […] que […] conserva”.

“Conservar” (do lat. conservare, composto pelo prefixo con-, usado em compostos para indicar a perfeição ou o aperfeiçoamento da ação, reforça e dá intensidade ao significado da palavra radical, e o verbo servare ‘manter a sua essência ou qualidades principais, guardar intacto’), significa manter o estado em que se encontra.

O termo foi incluído na definição em 1961, substituindo “preserva” que havia sido adotado inicialmente. Segundo Luís Raposo, “conserva” vai na direção da perícia curatorial, enquanto “preserva”, no sentido da perícia conservacionista e a substituição do termo foi feita numa altura em que os curadores dominavam amplamente a sociologia do museu, conseguindo impor o abandono do termo inicial, considerado conceitualmente limitado. “Preservar” (do lat. tardio, primeira metade do sec. XIII, praeservare, derivado de servare, com o prefixo prae-, pre- “antes”) significa prevenir antecipadamente um dano futuro.  A diferença entre ambos reside no prefixo, sendo que “conservar” sublinha a qualidade da ação de manter o estado do objeto, enquanto “preservar” coloca a tónica na antecipação ou na prevenção dos riscos que o possam danificar ou prejudicar, mantendo o sentido principal de manter a sua integridade. Assim, numa análise sumária da etimologia do termo, o sentido de “preservar” parece mais amplo e abrangente do que “conservar”.

É uma “instituição […] que […] investiga”.

“Investigar” (do lat. tardio, sec. XIV, investigare, derivado de vestigare, forma verbal derivada de vestigium “vestígio”, com o prefixo in- “em, dentro”), significa procurar vestígios, estudar ou pesquisar para encontrar algo que ainda não se conhece.

O museu tem o dever de estudar a coleção, mais, mais ainda, tem a obrigação de promover o estudo e o conhecimento da coleção, quer através da academia, quer através de informantes recrutados por entre os públicos e, em particular, junto das comunidades indígenas. O recurso a colaborações externas não subtrai a responsabilidade do museu enquanto agente ativo da investigação e autoridade credenciada e certificadora da informação.

É uma “instituição […] que […] comunica”.

“Comunicar” (do lat. communicare, derivado de communis “comum, público”, do proto-indo-europeu *.mei “trocar”, com o prefixo aumentativo con- “em, dentro”), significa tornar comum, dar notícia, ou fazer o outro participar de algo.

Enquanto emissor, o museu desenvolve processos comunicacionais internos, dentro do espaço expositivo e seus adjacentes, com os grupos formais e informais das suas audiências, e para lá do espaço físico, em ambiente virtual. Os processos comunicacionais proporcionados pelas tecnologias da informação e comunicação permitem integrar redes colaborativas e sistemas híbridos que articulam modelos da comunicação pessoal com a comunicação segmentada e de massa. Dada a complexidade de todos os processos comunicacionais ocorridos em contexto museológico e a intermediação subjacente a todos eles, seria mais adequado falar-se de mediação. “O termo [mediação] designa essencialmente toda uma gama de intervenções realizadas no contexto museal, com o fim de estabelecer certos pontos de contato entre aquilo que é exposto (ao olhar) e os significados que estes objetos e sítios podem portar (o conhecimento)” (p. 53). O conceito de mediação refere-se à comunicação, mas também à interpretação e ao esclarecimento do exposto, num diálogo dinâmico entre o museu e os seus interlocutores.

É uma “instituição […] que […] expõe”.

“Expor” (do lat. expōnere, derivado do proto-itálico pōno “lugar”, com o prefixo ex- “para fora”), significa pôr fora, ou tonar visível exteriormente, no sentido de mostrar ou apresentar publicamente.

Esta é a última das funções apontadas na definição do museu, conquanto seja a sua missão nuclear e identitária para a qual todas as restantes convergem. Talvez seja esta a razão para que surja em último lugar no elenco das funções museológicas. A coleção é preservada e estudada; é a partir do conhecimento da coleção que se projeta e constrói o discurso materializado na exposição. Assim, atendendo a uma subjacente lógica processual, a comunicação no museu fundamenta-se na exposição que é, em si mesma e enquanto narrativa, um processo comunicacional. A exposição, entendida como conjunto das coisas expostas ou resultado da ação de expor, é a apresentação visível dos objetos-signos, mas é também a sua descodificação.

A ordenação das funções museológicas poder-se-ia justificar por um argumento de sintaxe. Ao colocar o determinante (complemento direto) sobre o qual recai a ação do verbo transitivo na sequência deste, segue uma ordenação regular que facilita a compreensão da frase, sublinhando o caráter primordial da exposição, negligenciando o facto de a comunicação conferir significado às restantes ações museológicas.

É uma “instituição […] que […] expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente”.

Regista-se, aqui, o objeto sobre o qual incide toda a ação museológica: o património humano e natural, nas suas vertentes materiais e imateriais.

“Património” (do lat. patrimōnium, derivado do proto-itálico pater “pai”, com o sufixo –monyom “estado, ação condição”), significa propriedade ou herança paterna.

Tomando o conceito em sentido literal, património é aquilo que herdámos, mas alarga-se àquilo que os outros irão herdar de nós. O conjunto de coisas vinculadas entre gerações é inevitavelmente submetido a um exercício de seleção, pelo que a herança está conotada com aquilo que, a cada momento, é considerado relevante ou valioso, algo que nos identifica individual ou socialmente. O património é, por conseguinte, uma evidência testemunhal dessa identidade convencionada. O museu desempenha um papel fulcral neste dinâmico processo de síntese, no sentido em que valida e promove determinadas escolhas em detrimento de outras.

A indicação de património “humano” significa que foi criado ou produzido pelo homem. Porém a referência ao património natural faz-se através da sua relação com o homem, isto é, ao “seu meio envolvente”. Esta opção sugere alguma subalternidade do património natural.

A adoção dos termos “material” e “imaterial”, em vez de “tangível” e intangível”, é discutível. Enquanto os primeiros se referem à matéria, ou substância corpórea, os segundos apontam para a forma da sua apreensão. Ou seja, os primeiros centram-se no objeto ou conceito, enquanto os segundos aludem à sua relação com o indivíduo: material (do lat. mater “mãe”, com o sufixo –ial “semelhança, pertença”) é aquilo de que é feito, com um sentido; tangível é aquilo que pode ser tocado ou apreendido pelos sentidos.

É uma “instituição […] com fins de educação, estudo e deleite”.

É isso, mas espera-se que seja um espaço inclusivo e participativo, com objetivos de desenvolvimento e emancipação social.

Referências bibliográficas:
“Declaração de Santiago”. (1972, 30 de maio). Museum, 25(3).
Desvallées, A., & Mairesse, F. (2014). Conceitos-chave de museologia. São Paulo: Armand Colin; Comitê Internacional para Museologia do ICOM; Comité Nacional Português do ICOM.
O’Neill, M. (2002). The good enough visitor. In R. Sandell (Ed.), Social inclusion in museums (pp.24-40). Leicester: Leicester University Press.
Varine, H. (2000). Autour de la table ronde de Santiago. Publics & Musées, (17-18), 180-183

Nota: O tratamento do tema e a organização deste texto inspira-se nas notas publicadas, no Facebook, por Luís Raposo, entre 15 e 25 de fevereiro de 2019.


Fonte: Em torno da definição de museu

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