“Encontro no canto da memória”: visita ao atelier de Mário Rita
“O que fica?, perguntas-me. Um encontro no canto da memória.”
Nuno Júdice, Oferenda
A perceção da obra de arte é influenciada pelo sujeito que a vê e pelo contexto em que é vista. Num museu ou numa galeria, vemo-la depurada, depois de sujeita ao escrutínio curatorial. A ida a um atelier é, por isso, uma viagem ao âmago da criação, no seu contexto original, na nudez dos artifícios, concedendo-nos a entrada no universo pessoal e íntimo do criador-artista. É, também, o privilégio da observação não contaminada pela visão de outros, pelo discurso do curador ou pelas análises dos críticos.
A ida ao atelier de Mário Rita foi tudo isso: um caminho introspetivo onde as obras que vemos nos agarram e despertam as emoções, as memórias do que já vivemos, os reflexos daquilo que somos. Fui lá, ao atelier de Mário Rita, à descoberta da alma do artista, a esse vago fluir, disperso em duas salas, num prédio antigo, alto pé direito, tetos de estuque, paredes cobertas de telas, desenhos, traços, pinceladas, o soalho invisível sob as folhas de cartão, um par de sapatos, uma bata cinzenta pendurada, uma mesa quase invisível sob o peso das tintas, dos pincéis, dos frascos, das bisnagas, das espátulas, das folhas, adivinhando-se que, para lá do corredor, está o outro lado da vida que, aqui, se concentra nas quatro enormes colchas suspensas, a dominar o espaço e a obrigar-nos a um silêncio primordial e absolutamente ritual.
É uma enorme mater “Dolorosa“, de olhar velado, mas percetível sob o véu negro que o envolve, os lábios magnificamente desenhados, o coração de tons carnais e arroxeados, sublinhados por uma sombra lazúli, preciosa, atravessado por sete riscos que definem a figura como um atributo.
É um palhaço, também ele carnal, que se esvai num enorme chapéu cónico a dominar-lhe o rosto – “este sou eu! chamei-lhe Glória, mas é um palhaço” – a tornar-se um ser transparente, diáfano, atravessado por riscos pouco precisos, o pensamento de um corpo que deixa de ser.
É um rosto que nos reflete, o olhar que nos fixa e atravessa, entre o visível e o que se esconde ou apaga, entre o concreto e o abstrato, entre o que existe e aquilo que já não é. É aquele o olhar que nos prende. Apenas um olho, porque não suportaríamos o apelo nostálgico se aquele olhar fosse total. A “Coroação” é uma incidência de luz e sabedoria que nos evoca referências vetero-testamentárias a Moisés no seu encontro teofânico.
É por fim, como num caminho que começa no fogo do sofrimento e termina no rejuvenescimento dum mundo líquido, o último dos rostos, o olhar vazio, de olhos fechados ou ausentes, virados para dentro, à profundeza do ser que se descobre na sua essência.
Por tudo isso, essa foi uma viagem ao mundo poético, de um lirismo intenso e viril, de Mário Rita, mas também – de uma forma assumidamente egoísta – um percurso pessoal, em comunhão com aqueles rostos, com o que neles adivinhamos e onde nos perdemos e encontramos. Em certa medida, este foi um percurso apaziguador, sem ameaças, nem fantasmas, e que se clarifica à medida que observamos. Algo, aqui, é profundamente luminoso.
Estas obras são poliédricas, possuidoras de múltiplos sentidos. São obras que se desvendam devagar, porque convocam novas leituras a cada camada desvendada, a cada detalhe que se descobre. Nada é simples, nem é regular, entre a técnica magistral do desenho e o gesto amplo que se liberta por impulso, entre as insinuações de uma realidade e aa intromissões conceptualistas, entre a contemporaneidade e o passado, ou entre a pintura e o seu suporte, as velhas colchas de seda cuja textura entra no jogo da composição, com um padrão regular de grinaldas e festões em diálogo com a espontaneidade, por vezes rude e agressiva, por vezes melancólica, do vocabulário onírico de Mário Rita.
Saio dali, com um pensamento persistente: como serão estas obras noutro lugar? Como ficaria aquela colcha dourada, invadida de negros e de cromatismos vibrantes na figuração de uma mater dolorosa, num espaço retabular? Como ficarão todas estas obras num espaço branco e imaculado de um qualquer museu? Como será parar na contemplação de cada uma delas num invólucro vazio, sem quebras nem obstáculos, em intenso diálogo com o eu-visitante dessa exposição? Porque, sobretudo, saio dali com a certeza de que essa exposição é imperiosa.
Saio, também, com a certeza do muito mais que ali há para lá do muito pouco que aqui fica dito. E saio, devagar e em silêncio, de “um encontro no canto da memória”.
Nota:
Agradeço a Mário Rita por me ter aberto a porta de casa, ter permitido tirar fotografias e autorizado a publicá-las. Mesmo que (certamente) saiba que gosto muito da sua obra, isso não o obrigava à disponibilidade com que me acolheu.
Fonte: “Encontro no canto da memória”: visita ao atelier de Mário Rita