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Minha opinião | HH Magazine

Publicado em: Minha opinião | HH Magazine

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Em 2015 escrevi um breve texto no qual provocava o leitor a respeito do seguinte tema: a construção do conhecimento histórico e a opinião. Para abordar a questão contei uma breve historieta. Diz-se que dois amigos andavam pelas ruas de uma cidade qualquer. Ao passar por um prédio mais antigo um dos amigos falou: Nossa. Esse prédio está cheio de rachaduras. Cairá com certeza. O seu amigo tão logo interveio: Não, não. É só a sua impressão. Está tudo certo. Essas rachaduras são ocasionadas pelo tempo. Os materiais são feitos para aguentar tudo isso. Uma reforminha e tudo estará em ordem. Pouco acostumado a ser contrariado o amigo retrucou: Capaz. Está na cara que tudo vai ruir. Já vi milhares de coisas assim naqueles programas de televisão. Já querendo seguir o caminho, mas sem intenção de dar palco para a loucura, o amigo então falou: Está tudo certo com as rachaduras. Eu sou engenheiro civil. É algo totalmente comum na minha área. Estudamos anos e anos sobre muitas coisas de construção. Enquanto isso, na outra esquina, um senhor caiu na calçada. Logo se aproximaram duas moças. Uma gritando morreu, meu deus, morreu. A outra buscando controlar a situação falava não vai morrer, para com isso. Foi apenas uma queda. Sem dar ouvidos ao que fora dito, a primeira moça corria de um lado para o outro tentando achar algo para jogar no homem que, para ela, naquela ocasião, já era dado como morto. Calma, moça. Por favor. Está tudo bem. Ninguém morreu. Ele está apenas fraco pela queda. Sem aceitar o que era dito, a outra moça continuava a gritar: Meu deus. É sangue no chão. Não está vendo? É s-a-n-g-u-e. Vi naqueles seriados que isso é sinal de hemorragia interna. Ele vai morrer. Com o senhor já retomando a consciência e com muita calma a outra moça disse: Não se preocupe. Ele ficará bem. Eu sou médica. A situação está totalmente sob controle. Longe dali, um rapaz e uma moça caminhavam por ruas mais empoeiradas. Olhando para as casas e os moradores empobrecidos, o rapaz falou: bando de vagabundos. Não querem trabalhar e ficam aí curtindo o tempo passar. Sabem que terão bolsa prá isso e bolsa praquilo. Assustada com o comentário intempestivo, a moça respondeu que não é bem assim. A situação de empobrecimento é algo danoso. Ninguém gostaria de depender de outros. Não se pode falar que pobre é sinônimo de vagabundo, por favor. As coisas são mais complexas do que isso. O rapaz ainda irritado taxou: isso é coisa de esquerdista. Trabalho não falta. Bando de vagabundo que vive às custas do meu dinheiro. Não querendo seguir no mesmo rumo, pois na ofensa o rapaz tinha mais experiência do que ela, a moça apenas comentou: Infelizmente isso que você fala é muito comum. É uma simplificação absurda da realidade. É preciso viver e compreender a estrutura econômica e as condições políticas, institucionais e sociais que moldam há anos a realidade brasileira. Culpar sempre os indivíduos reconhecíveis é uma das faces de uma violência maior. Não se trata de perdoar ou não os que cometem atos de violência, mas de buscar compreender como se dá esta instrumentalização da violência. Sou historiadora, sei que as coisas não são tão simples assim. Ao que o rapaz lhe diz: Ahh, mas isso é a sua opinião.

Lá se foram 5 anos desde que escrevi esta historieta. Ela precisa urgentemente ser reescrita. Para o espanto geral da nação (talvez para alguns nem tanto, é verdade) a reescrita não se dará na parte final. Apesar do reconhecimento oficial da profissão de historiador e historiadora ter acontecido em 2020, ainda carregamos a marca de “palpiteiros” ou “opiniativos” profissionais. Será preciso repensar o trecho sobre a médica. Os médicos e médicas agora estão mais próximos dos historiadores e historiadoras. A medicina virou uma questão de opinião. Para atualizar a historieta usarei de um exemplo real. Aconteceu durante um debate nas eleições para a reitoria da Universidade Federal do Paraná. A candidata a vice-reitora, professora Ana Paula Cherobim, do departamento de Administração Geral e Aplicada, em encontro virtual com estudantes do setor de Ciências Biológicas, assim falou: Eu digo com a maior tranquilidade do mundo para vocês: tomem ivermectina e, ao primeiro sinal de Covid, tomem hidroxicloroquina porque você vai estar salvando a sua vida. Ao que um professor interlocutor responde: Não podia deixar de me manifestar, desculpe professora Ana Paula. Mas o uso da hidroxicloroquina e da cloroquina no momento é quase curandeirismo. Não existe dado que demonstre o efeito da cloroquina. Os médicos não podem criar protocolo para o uso dessas medicações. Isso é anticientífico. A senhora está no setor de Ciências Biológicas. A gente lê a literatura e a literatura não mostra isso. Essa é a nossa especialidade. Não contente com a resposta e desacostumada com o discurso científico, a professora respondeu: Eu respeito a sua opinião, mas eu não vou mudar a minha opinião em relação a isso. Eu prefiro salvar pessoas nesse momento.

Diferente da minha historieta, nesse caso houve uma resposta final do outro interlocutor: Não é a minha opinião. Registre bem isso, professora. É o que está registrado nos anais científicos, nos bons trabalhos de medicina e de ciências da saúde publicados nas melhores revistas. No seu caso é opinião.

Só espero que em 2025 eu não tenha que reescrever a historieta juntando os engenheiros civis ao grupo dos palpiteiros.

 

 

 


Créditos na imagem: Umberto Boccioni – La calle ante la casa (1912).

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Thiago David Stadler

Doutor em História. Professor Adjunto do Colegiado de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná campus de União da Vitoria. Contato: thibastadler@gmail.com

Fonte: Minha opinião | HH Magazine
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